23 de fev. de 2010

Campo e cidade no Brasil Contemporâneo - Ruy Moreira

Campo e cidade no Brasil contemporâneo
Ruy Moreira

A cidade é um fenômeno espacial que praticamente nasce com a sociedade. Para alguns estudiosos, literalmente. Para outros, a partir de um momento além. O campo, iversamente, é um fenômeno recente, correspondendo à divisão territorial do trabalho engendrada pela moderna sociedade capitalista.

No Brasil o fenômeno da cidade e do campo só em linhas gerais seguiu o modelo universal. Há uma forma histórica própria segunda a qual a cidade e o campo nascem e se relacionam no Brasil, bem como o modo de desenvolvimento de sua evolução até os dias de hoje.

A CIDADE E O CAMPO NO TEMPO E NA EVOLUÇÃO GERAL

Três são as formas históricas da relação cidade-campo enquanto modo de organização espacial das sociedades no tempo: cidade e campo numa sociedade de cultura rural; cidade e campo numa cultura de divisão territorial de trabalho; e cidade e campo numa sociedade de cultura urbana.

1. A cidade e o campo numa sociedade de cultura rural Childe correlaciona o nascimento da cidade ao ritual do enterro dos mortos. No ponto da localização do enterro e da peregrinação em homenagem aos mortos, aí aos poucos ter-se-ia erguido a cidade (CHILDE: 1966). Lewis correlaciona-o ao exercício do poder do macho, nas sociedades patriarcais, a cidade expressando esse poder (LEWIS: 1992).

Marx correlaciona-o ao surgimento do excedente na história, e, com o excedente, ao surgimento da divisão social do trabalho, que introduz o sacerdócio, a administração e a função militar como funções especializadas nas sociedades até então comunitárias. E, assim, ao surgimento das sociedades de classes, a cidade sendo a expressão desse poder (MARX e ENGELS, s/d).

Seja como for, a cidade que então nasce, surge num contexto de história marcada pela absoluta presença de uma economia e sociedade de base rural. As relações econômicas e societárias são determinadas pela presença da terra como meio de produção, daí derivando toda as formas de representação de mundo da população, inclusive a residente nas cidades.

As classes sociais residentes na cidade são classes rurais, com a particularidade de residirem em habitações citadinas e realizarem seu cotidiano na faina das atividades rurais.

O trabalho é uma atividade rural, portanto, não urbana, e por isso do universo rural e não do urbano vêm todos os símbolos de referência de mundo dos homens. O espaço e o tempo natural marcam os momentos do dia-a-dia. O homem e a natureza se fundem numa recíproca relação de pertencimento. E o imaginário é impregnado de entidades e entes vindos desse mundo assim entendido (MOREIRA, 2004).

Ademais, é um imaginário local. O fundamento rural e o nível técnico dos meios de transferência (transportes e comunicações) limitam o horizonte geográfico ao horizonte da aldeia, fundando uma cultura enraizada essencialmente no gênero de vida local, as características do gênero encerrando o mundo perceptivo e real da população.

É nesse espaço vivido que evoluem e se desenvolvem as relações entre a cidade e o “campo” (a rigor, uma relação cidade-mundo). E segundo uma forma de estrutura em que gênero de vida e modo de vida se organizam, centrados nos respectivos modos de produção.

2. A cidade e o campo numa cultura de divisão territorial do trabalho O surgimento da sociedade capitalista introduz a divisão territorial do trabalho como norma de organização da produção e das trocas, criando a cidade e o campo que hoje conhecemos como as duas células fundamentais dessa divisão territorial: à cidade cabem as funções dos setores secundário e terciário e o campo as relacionadas ao setor primário, assim se estabelecendo a relação de interdependência que leva cidade e campo se relacionarem numa relação de troca de produtos secundários e terciários por produtos primários. Produção, distribuição e consumo surgem assim como funções territorialmente distintas e interligadas, a cidade e o campo suprindo uma à outra e fazendo uma a consumidora dos produtos da outra, com a cidade no comando das relações. O comando da cidade submete o campo ao seu imaginário, quebrando-se a antiga relação de imediato pertencimento. Há, entretanto, três fases distintas de evolução nessas funções e trocas respectivas, estabelecendo três formas distintas de relação cidadecampo no tempo: a de fusão, a de separação e a de refusão.

A fase de fusão corresponde ao momento histórico de nascimento do capitalismo no interior da sociedade em que surge, na qual cidade e campo não se distinguem ainda, mantendo-se nos termos históricos da unidade e identidade rurais que vimos acima e que o capitalismo pouco altera nos começos do seu desenvolvimento. Tal fato se deve ao nascimento do capitalismo primeiro no ambiente rural do campo, só mais tarde transferindo-se para ir desenvolver-se na cidade. É a fase correspondente
ao período manufatureiro do modo de produção capitalista.

A fase de separação corresponde ao momento de desenvolvimento mais adiantado do capitalismo, em que a divisão técnica do trabalho torna-se a base estrutural de organização das forças produtivas, cidade e campo sofrendo as transformações que fazem da cidade o centro por excelência da produção da indústria e do terciário e o campo se esvaziando das funções rurais amplas do passado para limitar-se à função primárioagrícola imposta pelas necessidades da divisão do trabalho e das trocas. A
cidade rompe com o entorno rural, ensejando a revolução burguesa que prepara o ambiente político necessário ao desenvolvimento acelerado das novas forças produtivas ainda presas ao casulo da manufatura. É a fase correspondente ao período fabril criado pela primeira e difundido como norma pela segunda revolução industrial, quando efetiva e maduramente se institui e se implementa o modo de produção capitalista.

A fase de refusão corresponde ao momento atual, a do capitalista avançado, em que, com apoio na ação do Estado, a divisão do trabalho progressivamente se mundializa e se globaliza, cidade e campo passando a organizar-se com base numa difusão dos meios de transferência (meios de transporte, de comunicação e de transmissão de energia) que leva a indústria a poder localizar-se onde melhor lhe aprouve, fugindo das pressões políticas e de custos da cidade e migrando para localizar-se e desenvolver-se no campo, a função primário-agrícola e industrial se reencontrando e se fundindo no campo e a cidade se terciarizando como função econômica exclusiva. É a fase correspondente ao período tecnoeconômico da alta segunda e particularmente da terceira revolução industrial.

3. A cidade e o campo numa sociedade da cultura urbana Uma certa combinação de pressões políticas e de custos e de novas possibilidades de mobilidade territorial criadas no âmbito da tecnologia responde por este momento, que já analisamos como fase de refusão da relação cidade-campo capitalista.

A migração que instala a indústria nas áreas até então agrícolas, pastoris e extrativistas do campo, industrializando-o e levando a indústria a se combinar com a agricultura na forma complexa da agro-indústria nessas áreas, urbano-industrializa o campo e praticamente mergulha cidade e campo numa mesma cultura, a cultura urbana até então apanágio da cidade.

Uma espécie de fim de divisão de trabalho, técnica e territorial, que recria as relações entre setores econômicos até então estrutural e territorialmente separados, e uma certa homogeneização de valores que expressam um mundo e um modo de vida até então tidos como próprios e privilégio da cidade toma em comum cidade e campo, tornando-os, de novo, um mundo único, desta vez configurado na cultura urbana, que se propaga pelos campos, aí eliminando o que era ainda remanescente da cultura rural do passado. O campo se torna tão urbano quanto a cidade, fazendo o todo do espaço um “chão do capital”, na feliz expressão de Francisco de Oliveira (1977).

A CIDADE E O CAMPO NO TEMPO E NA EVOLUÇÃO BRASILEIRA

A cidade e o campo surgem e evoluem no Brasil apenas no geral em comum com o que vimos acima. O caráter agro-mercantilexportador inicial da sociedade brasileira determina uma forma histórica específica de espaço que distingue o que é cidade e o que é campo e assim o que é a relação cidade-campo no Brasil, bem como as formas que vão assumindo na medida da evolução e do tempo.

1. A agroexportação e a cidade e o campo no Brasil Colônia O caráter agromercantil e exportador, modo de dizer uma economia que é instalada no Brasil pela colonização portuguesa e vinculada ao processo de acumulação primitiva européia, determina nestes termos o caráter social da cidade e do campo, pouco então distinguindo-os entre si.

A economia tem uma raiz rural, mas é a natureza mercantil e exportadora confere a este rural sua especificidade, impregnando-a de uma cultura que respira e referencia-se em valores mercantis e externos. Há uma espécie de cosmopolitismo nesse rural, que a faz um mesmo quadro com a cidade. È esta assim uma cidade de um mundo de economia rural, mas um rural de cultura mercantil. Singer (1973) designou-a cidade de conquista e Oliveira (1977) de cidade que comanda o campo, mas que devemos compreender como uma cidade que expressa uma economia agro-mercantilexportadora e assim povoada e constituída por uma elite organizadora de uma economia rural com os olhos no mercado e valores externos onde este é
determinado e se localiza.

É assim que a cidade nasce no Brasil nesta ambiguidade de centro de função política de um mundo de cosmopolitismo rural, sem que cumpra uma função propriamente econômica numa dentro de um todo voltado para a acumulação do capital e o mercado externo. Uma cidade inserida num mundo rural, mas que o organiza no enfoque de um mundo de olhos políticos e cosmopolita. Dito de outro modo, uma cidade que nasce não das necessidades internas de uma divisão territorial de trabalho em uma sociedade rural como vimos na ambiência européia, mas sendo diferenciada ao tempo que integrada numa relação de pertencimento a um mundo local rural de origem externa quase que inteiramente. Trata-se de uma cidade efeito de uma ação que vem de fora e ao mesmo tempo pertence uma organização social e econômica que localmente por meio dela entroniza o de dentro e o de fora, dela fazendo a um só tempo rural e urbano, ambiguamente. Daí, cidade de conquista e de comando sobre o
“campo”.

Quando, então, a administração portuguesa divide o território colonial em comarcas, definindo a divisão política que o tempo transformará na malha brasileira dos municípios, instituindo a cidade como sua sede e as respectivas câmaras como fórum de comando da representação política, a cidade se estabelece e se especifica como um dado da política e de mando da elite fundiária, fundando-se em todo o Brasil com estas características.

Há uma cidade, mas não há um campo e uma relação cidade-campo, conseqüentemente, aqui se estabelecendo o ponto de semelhança com a cidade e o campo de cultura rural das sociedades passadas da história humana, mas também o da sua especificidade e diferença.

2. A cidade e o campo da divisão capitalista do trabalho e das trocas Este quadro se modifica com a independência e a implantação da agroexportação em bases não mais coloniais e escravistas que ocorrem no transcurso do século XIX. De um lado, a cidade consolida-se como o privilégio de mando exclusivo da elite rural tornada gestora de um Estado Nacional, e de outro lado se separa do campo para vir a receber a indústria e o terciário que aos poucos o próprio desdobramento da agroexportação implementa. Surge a cidade que poderíamos compreender como o centro político de organização e comando do processo de passagem da economia
agro-mercantilexportadora para a economia urbano-industrial moderna.
A modernização comandada “prussianamente” de cima mantêm a nova cidade culturalmente formada nos valores da elite rural progressivamente transformada em elite urbano-industrial, modelando-se o urbano nessa transferência de cultura dos de cima. Um processo de constituição do “moderno” nos valores do “arcaico” que a literatura de romance retrata com incrível transparência em sua obra romanesca.
A implementação não vem então de imediato. Dá-se uma passagem através da seqüência de transformações que levam a organização do espaço brasileiro a estruturar-se de uma autonomia regional numa relação de divisão territorial do trabalho que significa a integração das regiões numa relação para dentro em seu processo de produção e de trocas.

Metamorfose que Oliveira designa a passagem de uma “economia regional nacionalmente organizada” para uma “economia nacional regionalmente organizada” (OLIVEIRA, 1987). E que vem na medida do avanço da industrialização (MOREIRA, 2004).

O que é a cidade concreta dessa transição depende do recorte regional em que surge e se desenvolve. Mas no geral é a reafirmação da cidade-sede do poder político da elite rural municipal, a cidade do poder agrário local que a sociedade industrial moderna “prussianamente” herda do colonial-escravismo.

Dado a ausência inicial da indústria, a nova cidade neste momento mantém-se à margem de uma divisão técnica e territorial do trabalho, preservando a função de gestão política e de intermediação mercantil entre a região agroexportadora e o mercado mundial. É neste sentido que Oliveira a vê como uma cidade subordinada ao comando do campo, tomando o exemplo da cafeicultura, enquanto cidade ainda sujeita ao domínio da oligarquia agrário-exportadora, que o modelo de Estado Nacional oligárquico mantém e ainda mais amplia. Uma provável exceção são as cidades que surgem nas áreas coloniais de imigração italiana e alemã do Sul, nas quais a cidade expressa uma estrutura agrária relacionada a comunidades de pequenas propriedades e onde o espaço no seu conjunto se organiza nos moldes da organização européia que a imigração traz consigo.

A industrialização forja, entretanto, um centro urbano de novo tipo, moldado na relação integrada da divisão territorial do trabalho, onde a ação produtiva e de mercado tornam-na co-participante da atividade econômica através do exercício de uma função especializada. É a cidadeárea de atividade secundária e terciária, que relaciona-se com o campoárea de atividade primário-agrícola, componentes de um espaço de relação cidade e campo que dividem entre si tarefas econômicas e intercambiam seus produtos e serviços especializados. Estamos já nos anos cinqüenta, era do nascimento da cidade de comando do seu entorno rural e regional,
típica do desenvolvimento das formas de acumulação do capitalismo avançado. A cidade que monopoliza a indústria e as funções terciárias e forja o nascimento de um campo reduzido ás funções primárias.

A interdependência que aí surge, estabelece a cidade de primazia sobre o campo, a cidade que subordina no interesse da acumulação industrial o campo como a região da circundância imediata, e que parte dessa célula cidade-campo para regionalmente hierarquizar a totalidade do espaço nacional, até que a indústria migra para o campo circundante empreendendo a industrialização do campo, integralizando campo e cidade na cultura desta.

3. A cidade e o campo da cultura urbana A cidade e o campo integrados da urbano-industrialização avançada guardam, entretanto, a especificidade adicional de serem mais o produto dos meios de transferência, papel da mídia à frente, que da divisão
territorial do trabalho e das trocas que noutros contextos os informam.
Nisso residindo uma outra especificidade em relação à cidade e ao campo de outros contextos.

A desigual distribuição da renda e o decorrente desigual poder de compra do campo e da população interiorana que povoam suas atividades primárias e suas pequenas cidades, é a origem desse traço que faz da mídia – mais que a circulação das comunicações, dos transportes e da energia, que não raro vêm a seu reboque –, o meio de formação por excelência da cidade e do campo integrados pela cultura urbana no Brasil.

Pode-se resumir esta especificidade na afirmação de que no Brasil é a mídia quem faz o mercado, e assim o urbano, no sentido de entender que o Brasil se estabelece como uma sociedade consumo sem ter a estrutura de renda e de mercado que em outros países foi a condição de partida, mercê do papel que a mídia, mais que o Estado, exerce na implementação do recorte fordista.

No Brasil o rádio antecipa a rodovia. E a televisão dela quase é contemporânea. O programa de rádio divulga a mercadoria e o seu modo de compra, leva o consumo urbano aos mais distantes lugares do campo e difunde nele a sociedade de massa em formação na cidade. A rodovia vem em reforço ao serviço já antigo da ferrovia, radio e mercado pressionando o poder público na implementação da infraestrutura dos transportes, até que a televisão leva a malha das rodovias a enlaçar a totalidade dos lugares.

Só então, preparada para esta entrada, a indústria migra para o campo, transforma vilas em cidades, massifica o campo e instaura a sociedade de consumo como um real consolidado. Talvez por isso Lipietz tenha considerado o Brasil um país de fordismo periférico (LIPIETZ, 1988).

A CIDADE E O CAMPO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Não se pode analisar a cidade e o campo, e assim a relação entre ambos, nos parâmetros com que estamos teoricamente acostumados. Se cidade e campo e relação cidade-campo são o que são, é no quadro das especificidades históricas da sociedade brasileira que precisamos buscar nosso entendimento.

1. As especificidades da cidade e do campo e da relação cidade-campo no Brasil Mesmo com todas as transformações introduzidas pela marcha da evolução industrial, cidade no Brasil permanece fato da política. Define-se cidade como sede de município. Tenha o tamanho que tiver e sejam as funções de atividades que predominem na sua população, cidade no Brasil se define por esta especificidade antiga que a interliga à base políticoadministrativa do município.

A esta especificidade de formação se acrescente a especificidade recente proveniente do papel formador da mídia. Mesmo com todo simbolismo dos produtos vindos do mercado e inteiramente descolados dos modos de vida e cultura locais, a sociedade de consumo levado ao campo pela mídia não afeta o caráter rural que o processo originário empresta às cidades, estabelecendo-se entre a mídia e o poder municipal uma simbiose de reforço recíproco que pouco foi até hoje investigado.
Certamente que o mundo industrial, urbano e cada vez mais globalizado que a mídia leva ao campo, transformado num universo de indústrias e pequenas e médias cidades, altera seus modos de vida nos hábitos de uma cultura urbana. Dos novos hábitos de consumo ao plano da renovação dos quadros políticos, passa o campo por uma incrível metamorfose.

O campo se urbaniza, mas os hábitos da antiga cultura rural permanecem arraigados por trás das cidades em que ele se transforma. Poucas dessas cidades não permanecem controladas por famílias tradicionais do passado, que a ela fornecem seus quadros políticos e administrativos de referência. Há uma nítida relação simbiótica. A presença da cultura rural que permeia as populações do campo brasileiro interage com a mídia até mesmo pela necessidade de adequação de imagens e linguagem desta na divulgação de suas mensagens. Símbolos históricos e paisagísticos locais impregnam as imagens do consumo, que a mídia utiliza para passar sua ideologia. E nessa regra de merchandising, a mídia penetra ao tempo que reforça o poder político desses símbolos e os seus detentores.

Talvez por isto a rigor não haja uma rede de televisão, uma mídia nacional efetiva e de fato no Brasil, antes as redes sendo a aglutinação de repassadoras de programas das grandes emissoras em suas circunscrições regionais de domínio, repassadoras não raro de propriedade de políticos regionais que se originam, falam ou se apóiam nas antigas famílias rurais do passado.

2. O município e o custo da máquina pública (o problema da malha política) Há em decorrência um problema pouco analisado na malha política com que se divide e funcionalmente se exercita a administração pública no Brasil. Sede de município, os poderes enraizados na cidade são os primeiros a se sedimentarem quando este é instituído. Todo município surge como um reforço de domínio de quem historicamente exerce o domínio sobre a cidade-sede. Multiplicam-se os municípios e multiplicam-se as cidades com a multiplicação dessa cumplicidade, mesmo quando não é ela área de uma economia consolidada.

Ao significar um artificialismo administrativo, face a uma ligação umbelical que virou na história a referência da constituição celular do Estado, cidade e município acarretam nessa cumplicidade um custo administrativo da máquina pública brasileira que é tão maior quando mais a divisão da malha municipal se multiplica.
Condenada por este custo, sobretudo pela aceleração de sua multiplicação recente, a divisão da malha municipal não parece em si ser o problema, mas o conceito de cidade que a informa e o que ela no Brasil representa.

3. Estado e sociedade civil/ público e privado (o problema da cidadania) Não vindo de uma ruptura com o rural circundante, antes vindo para reafirmar a cultura e os valores rurais da elite sob a capa da cultura urbana, a cidade no Brasil não se posiciona como uma forma nova de representação e ideologia que configure a sociedade nrasileira como uma sociedade civil autônoma e desvinculada do Estado. Público e privado não se formam assim como realidades política e administrativamente separadas, a tutela do Estado sobre a sociedade civil confundindo e sujeitando o interesse público ao interesse privado. Não se efetiva, em outros termos, a revolução burguesa na forma como vimos acontecer nos países capitalistas que tomamos como referência de nossas concepções de sociedade e história.

A tutela do Estado sobre a sociedade civil chancelada pela cidade impede o florescimento de uma cultura de cidadania de forma burguesa, antes desenvolvendo-se no Brasil a relação típica do que Faoro designa por Estado patrimonial e cartelizado (FAORO, 1975).

Desde a representação nas câmaras municipais do período colonial o povo é o excluído do poder das decisões. Uma forma peculiar de pactuação das elites rurais regionais define o perfil e estrutura do Estado, faz da máquina do governo um executivo dos seus interesses e do Parlamento sua representação de conjunto. Um exemplo clássico é a famosa política do café com leite, assentado na política dos governadores. Desse modo, as conquistas do povo são concessões dessa elite. E o maior exemplo é o pacto populista dos anos Vargas.

Da base municipal à cúpula da União, a Federação se estrutura nesse modelo pactual, que tutela a sociedade civil, vicia as instituições políticas e neutraliza os movimentos de constituição de uma cidadania formal mínima que confira aos organismos que a represente qualquer autonomia própria de movimentos (CARVALHO, 2001).

Talvez seja este o mecanismo maior que, alicerçado numa relação cidade-campo que emana do poder das elites rurais em constante modernização econômica, reafirme o modelo de política no Brasil e o mantenha em sua essência mesmo diante das transformações mais radicais trazidas pela moderna urbano-industrialização.
4. O complexo agro-industrial e as tendências da divisão cidade e campo no Brasil
O processo da fusão entre a agricultura e a indústria que a migração desta para o campo estimula é, entretanto, o fato de mais forte repercussão sobre a cidade e o campo e suas relações em sua tendência futura.

Esta fusão se realiza através do complexo agroindustrial, que completa e radicaliza a fusão cidade-campo, no sentido da fusão dos setores econômicos num único complexo, desfazendo e reorientando a divisão territorial do trabalho costumeira da moderna economia capitalista.

A agro-indústria é uma forma antiga de organização econômica no Brasil, tendo existido sob duas formas basicamente: a do tipo canavieiroaçucareiro e a do tipo das indústrias de beneficiamento (MOREIRA, 2003).

Em ambas formas, agricultura e indústria se unem numa só unidade, mas não chegam a formar um complexo. O complexo vem com a incorporação dos setores terciário (serviços, transportes e armazenamento) e quaternário (informática e pesquisa avançada dos centros universitários) à agricultura e à indústria, já unidas numa atividade única, eliminando a separação setorial e a divisão territorial do trabalho correspondente.

Com o complexo, desfaz-se a única atividade que permanecia como característica econômica da cidade, após a migração da indústria para o campo, através da incorporação das atividades do setor terciário, que mesmo quando mantêm-se fisicamente localizadas nos centros urbanos, integram-se à vida cotidiana do complexo, e da incorporação da moderna rede da informática do setor quaternário. A pesquisa avançada da universidade, integrante do moderno setor quaternário, é um exemplo dessas atividades que se passam da cidade para o âmbito do complexo, através a criar de linhas inteiras de cursos de graduação e pós-graduação destinados inteiramente à formação de força de trabalho de alto nível de especialização demandada pelas atividades do complexo, não raro indo localizar-se na própria área ou nas regiões próximas às instalações da agro-indústria.
A organização e o desenvolvimento do complexo industrial se amplifica com o advento da engenharia genética e seu uso como força produtiva nova do modo de produção capitalista. Apoiada nessa nova base material, a economia dos complexos se generaliza para uma diversidade cada vez maior de produtos. E com isto, o espaço tende a fragmentar-se em diferentes áreas de recortes de gestão e funcionamento correspondentes aos complexos, numa forma de fragmentação em espaços autônomos e que não mais guardam relação com a separação cidadecampo de antes. Uma nova grade de fragmentação vai se multiplicando sobre o pano de fundo da antiga divisão cidade-campo (MOREIRA, 2005).


BIBLIOGRAFIA

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no terceiro mundo. São Paulo: Livraria Nobel
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. s/d. A Ideologia Alemã. Lisboa: Editorial
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SINGER, Paul. 1973. Economia Política da Urbanização. São Paulo:
Editora Brasiliense

Resenha: Pensar e ser em Geografia

MOREIRA, Ruy. Pensar e ser em Geografia. São Paulo: Contexto, 2007 (188 páginas).

Há muito tempo que Ruy Moreira está presente em nossas preocupações geográficas, um autor vivaz e intenso em todas as suas ocupações intelectuais. Com a ausência do grande Milton Santos, consideramos ser ele o maior responsável pela reflexão que envolve os troncos do saber que constitui aquilo que reconhecemos como geográfico. O título desta obra é a demonstração clara da atenção filosófica depositada pelo autor para os temas que perpassam o universo geográfico, mas que não se encerram nele. Ruy Moreira consegue sintetizar as angústias do nosso tempo na escolha do título da obra. Estamos na encruzilhada em que a modernidade nos inseriu, entre o pensar e o ser.

A obra é o retrato da caminhada deste autor nos últimos 30 anos, os textos se referem aos trabalhos escritos entre 1978 e 2006. A organização dos capítulos da obra, segue em três grandes eixos de discussão oferecidos por Moreira, mas que possuem uma interface interna muito clara e precisa. No primeiro capítulo temos os textos que demonstram interesse pelo desenrolar da história do pensamento geográfico, no segundo capítulo temos os textos de caráter epistemológico e no terceiro capítulo os que permeiam discussões ontológicas.

Desta forma, esta coletânea expressa uma variação no que se refere à temperatura, desde textos que foram elaborados no calor dos acontecimentos do movimento de renovação da geografia, tão sentido pelos geógrafos brasileiros no final da década de 1970, até aqueles elaborados com a calma e por vezes, a frieza característica das reflexões internalistas que permearam toda a obra de Moreira, tratando do fundamento desta ciência.

Uma grande característica dos textos de Ruy Moreira é conseguir criar e firmar pontes entre a geografia e os demais campos do saber, trabalhando de modo não usual e com desconforto em relação ao comum e ao convencional. Seus escritos subvertem as lógicas geográficas em muitos momentos, principalmente quando a geografia se vê diante dos limites de suas próprias construções teóricas. Com maestria ele se aproxima das artes, como no texto de abertura desta coletânea, “As formas da geografia e do trabalho do geógrafo no tempo” escrito em 1993 e publicado em 1994, buscando no lema maior do cinema novo “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”, um eixo de discussão acerca dos limites da sanha geográfica pela técnica, afirmando que o geógrafo “No passado, achou que a fotointerpretação era a interpretação da foto, quando era a descrição do que estava fotografado. [...] E hoje acha que basta o programa de geoprocesamento”.

É um alerta para a necessidade de criação de uma base teórica para pensarmos a imagem frente aos paradigmas espaciais do presente. Neste texto e nos demais textos que tratam das questões da história do pensamento geográfico percebe-se todo o furor comprometido e sistemático de suas observações sobre o caminhar desta ciência. Baseando-se em autores como Henry Lefebvre, Yves Lacoste, Pierre George, Massimo Quaini, Milton Santos entre outros, ele busca a todo momento esmiuçar os componentes teóricos geográficos. No balanço dos dez anos do movimento de renovação, que realiza no texto “A renovação da geografia brasileira no período 1978-1988”, escrito em 1992 e revisado em 2000, ele aponta para os diversos espectros da renovação, apresentando elementos das críticas em relação à epistemologia, à ideologia e à afirmação do objeto geográfico, demonstrando a carência do olhar ontológico em geografia e a preocupação com o sujeito, temas recorrentes em seus textos e ausentes na geografia contemporânea.

O interesse de Moreira pela consagração do espaço como categoria central na geografia e como construção teórica que permite as interfaces geográficas com o mundo e com as outras ciências, é marcante e essencial para compreendermos sua obra.

No terceiro texto intitulado “A sociedade e suas formas de espaço no tempo”, escrito originalmente em 1998, ele realiza uma corajosa síntese dos quadros "espaçotemporais” do desenrolar da vida humana. Partindo do espaço inicial surgido com a descoberta do fogo e a organização da agricultura, passando ao longo dos nove espaços definidos por ele, tratando das diversas dimensões dos modos espaciais que os indivíduos e as coisas em suas materialidades se expressaram. Um fator rico
neste texto é a capacidade de Moreira em encontrar traços temporais intensos para afirmar sua proposta de periodização. Entre o primeiro e o nono espaço, ele elabora os pilares históricos da configuração do mundo, chegando ao alvorecer da era global, com a aceleração, a banalização e a ecletização características deste tempo.

Sem promover um corte brusco entre as discussões apresentadas como históricas de outras tidas como epistemológicas ou ontológicas, Moreira consegue criar uma fronteira permeável entre seus textos de modo que, como ele mesmo afirma, os textos possam ser lidos por partes ou seguindo a temporalidade que foram escritos. Nos textos que estão organizados sob o título de “Epistemologia”, o autor oferece instigantes debates, que contribuíram para que as inquietações geográficas fossem por vezes apaziguadas e em outras agudizadas.

Nesta segunda parte podemos conferir e reler o seu emblemático “A geografia serve para desvendar máscaras sociais”, de 1978, escrito como protagonista da intenção de conferir no momento do debate do movimento de renovação, um estatuto epistemológico próprio para a geografia. A partir de uma crítica ao posicionamento dos geógrafos frente à realidade, apresenta ali, as discussões ao redor do conceito de espaço com a intenção de “[...] ver se o espaço foi sempre o chão desse saber, como se explica não ter sido notado, dotado do mínimo rigor teórico e pistemológico e usado como instrumento de conhecimento e transformação das sociedades?”. Este texto, sempre muito comentado entre os geógrafos, possui forte apelo ideológico, como devem ser os textos que visam abalar a estrutura do já concebido.

Após este texto, a geografia dificilmente poderia se posicionar de outra forma que não seja como ciência social. O viés marxista tão presente no texto é o sustentáculo de seu “estatuto epistemológico”, como ele mesmo afirma em uma de suas interessantes notas, e a consolidação da geografia como ciência social nos parece extrapolar inclusive a vertente marxista, estando presente nos diversos modos paradigmáticos que esta ciência se apresenta na contemporaneidade.

Este percurso comprometido com análises a partir de categorias embebidas de olhar geográfico e conceitos forjados no seio desta ciência, segue em mais dois textos da segunda parte, “As categorias espaciais da construção geográfica das sociedades” escrito em 2001 e “Conceitos, categorias e princípios lógicos para o método e o ensino da geografia” escrito em 1987. Nestes textos ele aprofunda seus argumentos em relação à presença do raciocínio dialético na análise espacial, busca pensar a unidade espacial a partir de autores clássicos da geografia, como Paul Vidal de La Blache, Eliseé Reclus, Jean Brunhes e Max Sorre, unidade esta que convive com a diversidade característica própria do espaço, promovendo tensões que expressam o contraditório modo de ser espacial. A idéia de contradição é viva em Moreira, calcada no materialismo histórico, é percebida de maneira inconteste em seus esquemas criados no texto de 1987, em que apresenta as categorias paisagem e território, que juntamente com a categoria central espaço, permitem as incursões do pensamento acerca da realidade, destrinchando as relações entre o homem e a natureza e entre os homens entre si.

No último texto desta segunda parte intitulado “Diálogo como os humanos e os físicos: por um mundo experimentado por inteiro”, escrito em 1994, percebemos algo um pouco distinto dos outros textos do livro. Demonstrando sua admiração por Armando Correa da Silva, como em outros textos, Moreira apresenta suas dúvidas acerca da consolidação do pensamento moderno, sustentado na razão cartesiana e no princípio da divisão. Neste texto o autor se demonstra instigado com estas outras formas de saber que apresentam proximidades com as discussões do holismo, afirma ele que “Ao contemplar a possibilidade de ver e praticar o mundo nesse enfoque holistadiferenciado do espaço, o próprio geógrafo estaria chamando a sociedade como um todo para este diálogo”. Sem nos precipitarmos na análise, podemos dizer que nos parece que ainda há uma certa desconfiança latente em Moreira ao tratar da perspectiva holista, visto que em poucos momentos de sua grande obra ele perpassa esta vertente.

Esta desconfiança, da qual também participamos, pode ser resultado dos ganhos que a perspectiva fenomenológica e seus estudos ontológicos trouxeram gradativamente ao pensamento de Moreira.

Ruy Moreira, fiel a sua trajetória incomum, apresenta uma terceira parte do livro com textos que discutem elementos considerados por muitos como irreconciliável à geografia, os textos se avizinham da literatura, das artes e das discussões que tratam de subjetividade. Em “O mal-estar espacial no fim do século XX”, Ruy Moreira realiza uma bela reflexão sobre o distanciamento que ocorreu entre o “ente” e o “ser”, o autor localiza na constituição da cisão cartesiana e a separação entre homem e natureza um processo de desnaturização, que posteriormente levou ao processo de desterreação culminando com a desterritorialização, ou em suas palavras “A desterritorialiação é a quebra definitiva da relação de corpo que o homem mantinha com o chão e o cosmos...”.

Em outro texto desta terceira parte, o autor realiza a maior ousadia presente no livro, o título já provoca o leitor “Ser-tões: o universal no regionalismo de Graciliano Ramos, Mário de Andrade e Guimarães Rosa”. É uma tentativa deliberada de abalar as estruturas acinzentadas da ciência. Nas suas afirmações controvertidas tem-se a constatação de que a obra literária dos autores trabalhados não dicotomizam o espaço.

Há, em suas palavras, uma fusão entre a internalidade subjetiva e a externalidade objetiva, com clara observância de semelhança entre as preocupações e até mesmos as construções teóricas dos geógrafos e demais cientistas sociais. Um namoro fecundo com a arte é promovido nas poucas páginas deste texto, que na verdade é a articulação de dois textos escritos com intervalo de quatro anos 1992 e 1996. Para ele, o belo "Grandes Sertões: Veredas" de Guimarães Rosa, ficando apenas com este aperitivo, "... é a reflexão universalista do ser regionalizado”, algo que para Moreira, é no mínimo uma almejada constatação geográfica, que na literatura é evidente.

Seguindo sua vocação para desestabilizar o pré-concebido, Moreira nos brinda com seu “A identidade e a representação da diferença na geografia” de 1999, buscando subsídios em autores contemporâneos que travam um rico debate com a modernidade, entre eles Jacques Derrida e Gilles Deleuze. Este texto, como os demais da terceira parte, se mostra provocador, tratando de identidade e diferença. Ele decreta que o maio de 1968 na França fez ecoar pelo mundo, a valorização da diferença e que a geografia optou sempre pela identidade; principalmente no trato dado ao conceito de região, que em sua visão “... a diferença geográfica virou identidade”. Romper com esta perspectiva e abrir para a ontologia permitirá o surgimento de uma “... geografia de um espaço que pode ser pensado como a coabitação tensa da diferença e da unidade”.

No texto final, escrito em 2005, “Sociabilidade e espaço: as sociedades na era da terceira revolução industrial” Moreira traz à tona o conceito de Gênero de Vida de Vidal de La Blache, para afirmar a necessidade de olhar para estas formas de vida que ainda resistem como diferença, recusando as demandas criadas pelas sociedades industriais.

Os limites de uma resenha nos trazem incapacidade de demonstrar a complexidade de textos tão instigantes como os de Ruy Moreira. Entre o ser e o espaço fundam-se relações que para ele seja talvez, a maior necessidade de reflexão geográfica.

Ou como afirmou em recente curso ministrado, será que a geografia teria que se preocupar menos com sua afirmação no mundo como epistemologia e sim buscar traçar caminhos outros de interpretação da realidade, aprofundando suas interfaces com as questões ontológicas? Os dados estão lançados e entre este pensar e ser da geografia
paira livre um homem coerente e inquieto que traduz em grande medida os conflitos do nosso tempo e as clausuras incontornáveis da geografia.

Sandro de Oliveira Safadi
Geógrafo, Doutorando em Geografia e Professor
Substituto do Instituto de Estudos Sócio-ambientais
da Universidade Federal de Goiás.
Publicado originalmente em Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 2, n. 3 maio/2008

O torpor do capitalismo - Robert Kurz

O torpor do capitalismo

Publicado em 11/02/96 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.

Há uma concepção ingênua, porém sensata, sobre a produtividade: quanto mais ela cresce, assim pensa o bom raciocínio humano, mais alívio traz à vida em comum. A maior produtividade permite fabricar mais bens com menos trabalho. Não é maravilhoso? Em nossa época, no entanto, parece que o aumento da produtividade, além de criar uma quantidade exagerada de bens, resultou numa avalanche de desemprego e de miséria.

Desde o final dos anos 70, os sociólogos costumam falar de um desemprego tecnológico ou "estrutural". Isso significa que o desemprego desenvolve-se com independência dos movimentos conjunturais da economia e cresce até mesmo em períodos de surto financeiro. Nos anos 80 e 90, a base desse desemprego estrutural, de ciclo para ciclo, tornou-se cada vez maior em quase todos os países; em 1995, segundo números da Organização Internacional do Trabalho, 30% da população economicamente ativa de todo o mundo não possuía emprego estável.

Essa triste realidade, além de incompatível com o bom raciocínio humano, suscitou uma curiosa reação dos economistas. Os doutores em ciências econômicas agem como se o fenômeno irracional do desemprego em massa não tenha absolutamente nada a ver com as leis da economia moderna; as causas, segundo eles, devem ser buscadas em fatores alheios à economia, sobretudo na política financeira equivocada dos governos.

Ao mesmo tempo, porém, os mesmos economistas afirmam que o aumento da produtividade não diminui o número de empregos, mas é responsável, ao contrário, pelo seu crescimento. Isso foi comprovado pela história da modernidade. O que para o observador imparcial se assemelha à causa da doença, deve assim integrar a própria receita para a cura. Os economistas operam com uma equação que mais parece um sofisma. Onde está o erro?

Um axioma da teoria econômica afirma que o objetivo da produção é suprir a falta de bens da população. Ora, isso é uma pura banalidade. Todos sabem que o objetivo da produção moderna é originar um lucro privado. A venda dos bens produzidos deve render mais dinheiro do que o custo de sua produção. Qual a relação interna entre esses dois objetivos? Os economistas dizem que o segundo objetivo é apenas um meio (na verdade o melhor meio) de atingir a primeira meta. E, no entanto, é evidente que ambos objetivos não são idênticos; o primeiro refere-se à economia como um todo, o segundo à economia das empresas. Disso resultam contradições que, desde seu início, tornaram instável o sistema econômico moderno.

A idéia tão natural de que o aumento da produtividade facilita a vida dos homens não leva em conta a racionalidade das empresas. Na verdade, trata-se de saber qual será o uso de uma maior capacidade produtiva. Se a produção visa a suprir as próprias necessidades, a evolução dos métodos e dos meios será utilizada simplesmente para trabalhar menos e desfrutar do maior tempo livre.

Um produtor de bens para o mercado, no entanto, pode ter a brilhante idéia de trabalhar tanto quanto agora e utilizar a produtividade adicional para produzir uma quantidade ainda maior de mercadorias, a fim de ganhar mais dinheiro em vez de aproveitar o ócio. Um administrador de empresas é mesmo forçado a chegar a essa idéia, pois de nada lhe serve que os assalariados conquistem um maior espaço de tempo livre. Para ele, a produtividade adicional representa de qualquer modo um trunfo contra a concorrência, sendo revertida em benefício da diminuição dos custos da empresa, e não em favor da maior comodidade dos produtores.

É por isso que, na história econômica moderna, a jornada de trabalho diminuiu numa proporção muito menor do que o aumento correspondente de produtividade. Hoje em dia, os assalariados ainda trabalham mais e durante mais tempo do que os camponeses da Idade Média.

A diminuição dos custos, portanto, não significa que os trabalhadores trabalham menos mantendo a mesma produção, mas que menos trabalhadores produzem mais produtos. O aumento da produtividade reparte seus frutos de forma extremamente desigual: enquanto trabalhadores "supérfluos" são demitidos, crescem os lucros dos empresários. Mas, se todas as empresas entrarem nesse processo, há a ameaça de surgir um efeito com que não contavam os interesses obtusos da economia empresarial: com o crescente desemprego, diminui o poder de compra da sociedade. Quem comprará então a quantidade cada vez maior de mercadorias?

As guildas dos artesãos da Idade Média pressentiram esse perigo. Para elas era um pecado e um crime fazer concorrência aos colegas por meio do aumento de produtividade e tentar conduzi-los a todo custo à ruína. Os métodos de produção eram por isso rigidamente fixados, e ninguém os podia modificar sem o consentimento das guildas. O que impedia um desenvolvimento tecnológico era menos a incapacidade técnica do que essa organização social estática dos artesãos. Estes não produziam para um mercado no sentido moderno, mas para um mercado regional limitado, livre de concorrência. Essa ordem de produção durou mais tempo do que geralmente se supõe. Em grande parte da Alemanha, a introdução de máquinas foi proibida pela polícia até meados do século 18.

A Inglaterra, como se sabe, foi a primeira a derrubar tal proibição. O caminho, assim, ficou livre para as invenções técnicas como o tear mecânico e a máquina a vapor, os dois motores da industrialização. E, súbito, irrompeu a temida catástrofe social: em toda a Europa, na passagem do século 18 para o 19, alastrou-se o primeiro desemprego tecnológico em massa.

Tudo isso é passado, dizem os economistas: a evolução posterior não demonstrou que os temores eram infundados? De fato, apesar da expansão contínua das novas forças produtivas do ramo industrial, o desemprego tecnológico caiu rapidamente. Mas por que motivo? Acossados pela concorrência recíproca, os industriais foram obrigados a restituir aos consumidores parte de seus ganhos com a produção. As máquinas tornaram os produtos essencialmente mais baratos ao consumidor.

Embora para a produção de uma certa quantidade de produtos têxteis fosse necessária uma força de trabalho menor do que antes, a demanda por roupas e tecidos baratos cresceu tanto que, ao contrário das expectativas, um número considerável de trabalhadores foi empregado nas novas indústrias.

Com isso, porém, o problema não foi solucionado pela raiz. Todo mercado, a seu tempo, atinge um limite de saturação que o torna incapaz de conquistar novas camadas de consumidores. Somente numa certa fase da evolução o aumento da produtividade conduz à criação de mais empregos para a sociedade, apesar da menor quantidade de trabalho necessária para a confecção de cada produto.

Nessa fase, os métodos desenvolvidos barateiam o produto e o preparam ao grande consumo das massas. Antes de alcançar esse estágio, o aumento de produtividade lança o antigo modo de produção numa profunda crise, como mostra o exemplo dos artesãos têxteis no século 19. Na outra ponta do desenvolvimento, a crise é igualmente uma ameaça (com base na própria produção industrial), quando o estágio de expansão é ultrapassado e os mercados periféricos encontram-se saturados.

Mas essa mesma expansão ainda pode ser transferida a outros setores. Ao longo do século 19, os antigos redutos artesanais foram progressivamente industrializados. Cada vez mais produtos tiveram seus preços reduzidos e permitiram a explosão do mercado. O processo sofreu uma tal aceleração que os artesãos "supérfluos" eram imediatamente absorvidos pelo trabalho industrial, evitando assim que se repetisse a grande crise social dos antigos produtores têxteis.

As crises, mesmo que inevitáveis, pareciam somente transições dolorosas para se atingir novos patamares de prosperidade. Mas o que ocorre quando todos os ramos da produção já estão industrializados e todos os limites de expansão do mercado já foram alcançados?

O desenvolvimento econômico parecia refutar também esse receio. A indústria não apenas absorveu os antigos ramos da produção artesanal, mas também criou a partir de si mesma novos setores produtivos, inventou produtos jamais imaginados e infundiu a sede de compra nos consumidores. O processo de aumento da produtividade, expansão e saturação dos mercados, criação de novas necessidades e nova expansão parecia não ter limites.

Economistas como Joseph Schumpeter e Nikolai Kondratieff formularam, a partir dessas idéias, a teoria dos chamados "grandes ciclos" no desenvolvimento da economia moderna. Segundo essa teoria, uma certa combinação de indústrias sempre atinge seu limite histórico de saturação, envelhece e começa a encolher, após uma fase de expansão impetuosa. Empresários inovadores, na condição de "destruidores criativos" (Schumpeter), inventam todavia novos produtos, novos métodos e novas indústrias que libertam o capital dos antigos investimentos estagnados e lhes dá novo alento num corpo tecnológico renovado.

O exemplo lapidar desse nascimento de um novo ciclo é a indústria automobilística. Em 1886, o engenheiro alemão Carl Benz já tinha construído o primeiro carro; mas até a Primeira Guerra Mundial, tal mercadoria permaneceu um produto de luxo extremamente caro. Como que egresso das páginas do livro-texto de Schumpeter, surgiu então o empresário inovador Henry Ford. Sua criação não foi o próprio automóvel, mas um novo método de produção.

No século 19, a produtividade cresceu sobretudo pelo fato de os ramos artesanais terem sido industrializados por meio da instalação de máquinas. A organização interna da própria indústria ainda não fora objeto de grandes cuidados. Só após 1900 o engenheiro norte-americano Frederick Taylor desenvolveu um sistema de "administração científica", a fim de desmembrar as áreas de trabalho específicas e aumentar a produção.

Ford descobriu por meio desse sistema reservas insuspeitadas de produtividade na organização do processo produtivo. Observou, por exemplo, que um operário da linha de montagem perdia em média muito tempo ao buscar parafusos. Estes foram então transportados diretamente ao local de trabalho. Parte do processo tornou-se "supérfluo" e, logo em seguida, foi introduzida a esteira rolante.

Os resultados foram surpreendentes. Até a Primeira Guerra, a capacidade produtiva de uma fábrica de automóveis de porte médio permanecia em torno dos 10 mil carros por ano; em Detroit, a nova fábrica de Ford produziu, no exercício financeiro de 1914, a fantástica cifra de 248 mil unidades do seu célebre "Modell T". Os novos métodos deflagraram uma nova revolução industrial. Mas tal revolução "fordista" ocorreu tarde demais para poder evitar a crise econômica mundial (1929-33), desencadeada pelos custos da guerra e pelo declínio global do comércio.

Depois de 1945, porém, sobreveio o "grande ciclo" da produção industrial de automóveis, aparelhos domésticos, divertimentos eletrônicos etc. Baseado no antigo modelo, só que agora em dimensões muito maiores, o aumento da produtividade criou um número espantoso de novos empregos, já que a expansão do mercado de carros, geladeiras, televisões etc, exigia, em termos absolutos, mais trabalho do que os métodos "fordistas", em termos relativos, economizavam em cada produto.

Nos anos 70, as indústrias fordistas atingiram seu nível histórico de saturação. Desde então vivemos a terceira revolução industrial, da microeletrônica. Cheio de esperanças, alguém se lembrou imediatamente de Schumpeter. De fato, os novos produtos passaram por um processo semelhante de barateamento, à maneira dos automóveis e das geladeiras: o computador, antes um aparelho caro e destinado a grandes empresas, transformou-se rapidamente num produto de consumo das massas. Desta vez, porém, o surto econômico não causou o correspondente aumento de empregos.

Pela primeira vez na história da modernidade, uma nova tecnologia é capaz de economizar mais trabalho, em termos absolutos, do que o necessário para a expansão dos mercados de novos produtos. Na terceira revolução industrial, a capacidade de racionalização é maior do que a capacidade de expansão. A eficácia de uma fase expansiva, criadora de empregos, deixou de existir. O desemprego tecnológico da antiga história da industrialização faz seu retorno triunfal, só que agora não se limita a um ramo da produção, mas se espalha por todas as indústrias, por todo o planeta.

O próprio interesse econômico das empresas conduz ao absurdo. Já é tempo, depois de 200 anos de era moderna, que o aumento da produtividade sirva para trabalhar menos e viver melhor. O sistema de mercado, porém, não foi feito para isso. Sua ação restringe-se a transformar o excedente produtivo em mais produção e, portanto, em mais desemprego. Os economistas não querem compreender que a terceira revolução industrial possui uma qualidade nova, em cujo meio a teoria de Schumpeter não é mais válida. Em vão, eles ainda esperam o "grande ciclo" da microeletrônica _em vão, ainda esperam Godot.

Robert Kurz

O recomeço da história - Milton Santos

O recomeço da história
Publicado em 09/01/00 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.

Vivemos em um mundo complexo, marcado na ordem material pela multiplicação incessante do número de objetos e na ordem imaterial pela infinidade de relações que aos objetos nos unem. Nosso mundo é complexo e confuso ao mesmo tempo, graças à força com a qual a ideologia penetra nos objetos e ações. Por isso mesmo, a era da globalização, mais do que qualquer outra antes dela, exige uma interpretação sistêmica cuidadosa, de modo a permitir que cada coisa seja redefinida em relação ao todo planetário. A grande sorte dos que desejam pensar a nossa época é a existência de uma técnica planetária, direta ou indiretamente presente em todos os lugares, e de uma política planetária, que une e norteia os objetos técnicos. Juntas, elas autorizam uma leitura ao mesmo tempo geral e específica, filosófica e prática, de cada ponto da Terra. Emerge, desse modo, uma universalidade empírica, de modo a ajudar na formulação de idéias que exprimam o que é o mundo e o que são os lugares. Cria-se, de fato, um novo mundo. Para sermos ainda mais precisos, o que, afinal, se cria é o mundo como realidade histórica unitária, ainda que ele seja extremamente diversificado. Ele é datado com uma data substantivamente única, graças aos traços comuns de sua constituição técnica e à existência de um único motor das ações hegemônicas, representado pelo lucro em escala global. É isso, aliás, que, junto à informação generalizada, assegura a cada lugar a comunhão universal com todos os outros. Ao contrário do que tanto se disse, a história universal não acabou; ela apenas começa. Antes o que havia era uma história de lugares, regiões, países. As histórias podiam ser, no máximo, continentais, em função dos impérios que se estabeleceram em uma escala mais ampla.

A vez da humanidade O que até então se chamava de história universal era a visão pretensiosa de um país ou continente sobre os outros, considerados bárbaros ou irrelevantes. O ecúmeno era formado de frações separadas ou escassamente relacionadas do planeta. Somente agora a humanidade faz sua entrada na cena histórica como um bloco, entrada revolucionária, graças à interdependência das economias, dos governos, dos lugares. O movimento do mundo conhece uma só pulsação, ainda que as condições sejam diversas segundo continentes, países, lugares, valorizados pela sua forma de participação na produção dessa nova história. Um dado importante de nossa época é a coincidência entre a produção dessa história universal e a relativa liberação do homem em relação à natureza. A denominação de era da inteligência poderia ter fundamento nesse fato concreto: os materiais hoje responsáveis pelas realizações preponderantes são cada vez mais objetos materiais manufaturados e não mais matérias-primas naturais. Na era da ecologia triunfante, é o homem quem fabrica a natureza, ou lhe atribui valor e sentido, por meio de suas ações já realizadas, em curso ou meramente imaginadas. As pretensões e a cobiça povoam e valorizam territórios desertos. Todavia a mesma materialidade, atualmente utilizada para construir um mundo confuso e perverso, pode vir a ser uma condição da construção de um mundo mais humano. Basta que se completem as duas grandes mutações ora em gestação: a mutação tecnológica e a mutação filosófica da espécie humana. A grande mutação tecnológica é dada com a emergência das técnicas da informação, as quais, ao contrário das técnicas das máquinas, são constitucionalmente divisíveis, flexíveis e dóceis, adaptáveis a todos os meios e culturas, ainda que o seu uso perverso atual seja subordinado aos interesses dos grandes capitais. Mas, quando sua utilização for democratizada, essas técnicas doces estarão a serviço do homem. Por outro lado, muito falamos hoje nos progressos e nas promessas da engenharia genética, que conduziriam a uma mutação do homem biológico. Isso, porém, ainda é do domínio da história da ciência e da técnica. Pouco, no entanto, se fala das condições ainda hoje presentes, que podem assegurar uma mutação filosófica do homem, capaz de atribuir um novo sentido à existência de cada pessoa e também do planeta. Nesse emaranhado de técnicas dentro do qual estamos vivendo, o homem descobre suas novas forças. Já que o meio ambiente é cada vez menos natural, o uso do entorno imediato pode ser menos aleatório. Aumenta a previsibilidade e a eficácia das ações. Ampliam-se e diversificam-se as escolhas, desde que se possa combinar adequadamente técnica e política.

O mundo misturado O mundo fica mais perto de cada qual, não importa onde esteja. Criam-se, para todos, a certeza e a consciência de ser mundo e de estar no mundo, mesmo se ainda não o alcançamos em plenitude material ou intelectual. O próprio mundo se instala nos lugares, sobretudo nas grandes cidades, pela presença maciça de uma humanidade misturada, vinda de todos os quadrantes e trazendo consigo interpretações variadas e múltiplas que ao mesmo tempo se chocam e colaboram na produção renovada do entendimento e da crítica da existência. Assim, o cotidiano de cada qual se enriquece, pela experiência própria e pela do vizinho, tanto pelas realizações atuais como pelas perspectivas de futuro.

As ricas dialéticas da vida nos lugares criam, paralelamente, o caldo de cultura necessário à proposição e o exercício de uma nova política.

Ousamos, desse modo, pensar que a história do homem sobre a Terra dispõe afinal das condições objetivas, materiais e intelectuais, para superar o endeusamento do dinheiro e dos objetos técnicos e enfrentar o começo de uma nova trajetória. Aqui, não se trata de fixar datas para as etapas ou o início do processo e, nessa ordem de idéias, o ano 2000, o novo século, o novo milênio são apenas momentos da folhinha, marcos num calendário.

Ora, a folhinha e o calendário são outros nomes para o relógio, por isso são convencionais, repetitivos e historicamente vazios. O que conta mesmo é o tempo das possibilidades efetivamente criadas, a que chamamos tempo empírico, cujas mudanças são marcadas pela irrupção de novos objetos, de novas ações e relações e de novas idéias.

As condições materiais já estão dadas para que se imponha a desejada grande mutação, mas o seu destino vai depender de como serão aproveitadas pela política. O que, talvez, seja irreversível são as técnicas, porque elas aderem ao território e ao cotidiano. Mas a globalização atual não é irreversível. Agora que estamos descobrindo o sentido de nossa presença no planeta, pode-se dizer que uma história universal verdadeiramente humana, finalmente, está começando.

Milton Santos

3 de fev. de 2010

Sugestões: Ensino de Geografia

ALMEIDA, Rosângela Doin de. Cartografia escolar. São Paulo: Contexto, 2007.
______. Do desenho ao mapa. Iniciação cartográfica na escola. São Paulo: Contexto, 2003.
ANDRADE, M. C. de. Caminhos e descaminhos da geografia. Campinas: Papirus, 1989.
CALLAI, Helena Copetti. A Geografia e a escola: muda a Geografia? Muda o ensino? In:
Terra Livre. n. 16. São Paulo, 1° sem./2001.
CARLOS, Ana Fani A. (org). A Geografia na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2007.
CASTROGIOVANNI, A. C. Ensino de Geografia. Práticas e textualizações no cotidiano. Porto Alegre: Meditações, 2001.
CAVALCANTI, L. de S. Geografia, escolar e construção de conhecimentos. Campinas (São
Paulo): Papirus, 1998.
FISCARELLI, R. B. de O. Material didático: discursos e saberes. Araraquara: Junqueira&Marin, 2008.
KIMURA, Shoko. Geografia no ensino básico: questões e respostas. São Paulo: Contexto, 2008.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Para onde vai o ensino de Geografia. São Paulo: Contexto, 2005.
PASSINI, E. Y. Prática de ensino de geografia e estágio supervisionado. São Paulo: Contexto, 2007.
PONTUSCHKA, N. N.; OLIVEIRA, A. U. (Orgs.) Geografia em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2002.
PONTUSCHKA, N. N.; PAGANELLI, T. I.; CACETE, N. H. Para ensinar e aprender Geografia. São Paulo: Cortez, 2007.
RESENDE, M. S. A geografia do aluno trabalhador. Caminhos para uma prática de ensino. São Paulo: Loyola, 1986.
STRAFORINI, Rafael. Ensinar Geografia: o desafio da totalidade-mundo nas séries iniciais. 1. ed. São Paulo: Annablume, 2004.
VESENTINI, J. W. Para uma geografia crítica na escola. São Paulo: Ática, 1992.
VESENTINI, J. W. (Org.) Geografia e ensino: textos críticos. Campinas: Papirus, 1989.
VESENTINI, J. W. (Org.) O ensino da Geografia no século XXI. Campinas: Papirus, 2003.
VLACH, V. Polemizando a questão: o livro didático da Geografia no ensino de 1º e 2º graus. Geografia em debate. Belo Horizonte: Lê, 1990.

LIvro: O pensamento geográfico brasileiro. Vol. 1

APRESENTAÇÂO

Este livro dá seqüência às reflexões e propostas de Para onde vai o pensamento geográfico?. E tem uma história. Tenho notado nos debates de temas como globalização, meio ambiente, arranjos espaciais determinantes da organização estrutural de nossas sociedades, conflitos de territorialidades, uma curiosidade do público participante com as fontes originárias das teorias que os embasam e a surpresa agradável de saber que essas fontes são os clássicos da Geografia. Curiosidade e surpresa seguidas de um enorme interesse em conhecer as obras em que esses clássicos da Geografia externam suas idéias. Esse interesse geral em conhecer a literatura geográfica básica vem aumentando o interesse doméstico também dos geógrafos, entre os quais principalmente os professores da rede escolar e universitária e os estudantes de graduação e pós-graduação, estimulados por um diálogo público que está sempre crescendo.

Daí a estrutura deste livro. Seu objetivo é contribuir, para dentro e para fora da Geografia, para o crescimento deste diálogo, oferecendo alternativas que sanem a dificuldade de acesso à bibliografia procurada e dando subsídios à sua leitura crítica. Para isso, escolhi sete dentre os geógrafos que tiveram papelchave na formação da Geografia brasileira – Elisée Reclus, Paul Vidal de La Blache, Jean Brunhes, Max Sorre, Pierre George, Jean Tricart e Richard Hartshorne – e uma obra para base do estudo, uma para cada clássico, optando pelas obras disponíveis em língua portuguesa e espanhola e representativas do seu pensamento. A influência desses clássicos sobre a formação da Geografia brasileira – chamo-os por isso matrizes clássicas originárias – é o critério da escolha. A intenção é desembocar seu estudo na análise das matrizes geográficas brasileiras.

O livro está dividido em três partes. A primeira parte traça o quadro da formação histórica da Geografia moderna e da Geografia clássica dentro dela, analisa o conceito e o contexto do que aqui se entende por clássicos e a razão de por que assim nomeá-los e oferece um conceito de matriz em Geografia à luz dos comentários críticos do que se chama a tradição de escolas e tradição de geografias setoriais. Para facilitar, pensando num diálogo simultâneo com o leitor dentro do livro, apresento na segunda parte um resumo crítico de cada obra escolhida, tomando por base o que entendo exprimir o núcleo lógico do pensamento nela desenvolvido, às vezes transcrevendo pedaços inteiros do texto original quando é preferível deixar a palavra ao próprio autor. A terceira parte, por fim, faz o balanço analítico das idéias dos autores, comparando seus conceitos e enfoques, mostrando seus alinhamentos, estabelecendo os entrecruzamentos e correspondências de epistemologias e apresentando o quadro sintético do modelo matricial de cada um.

Pede-se atenção especial para o método de síntese utilizado. A síntese é, no fundo, uma leitura do livro feita a partir do que se entende por seu nexo discursivo (seu núcleo racional). Corre-se, assim, o risco de, na prática, torcerse o pensamento original do autor, adulterando-se o seu conteúdo real com o fim de adequá-lo a uma interpretação que se quer fazer. É um risco, certamente. Mas talvez haja também a vantagem de poder estimular o leitor a ir ao livro original, lê-lo na sua integralidade, ajudando-o a quebrar a inibição do contato direto com o clássico e, assim, também saborear, como eu, o livro em sua frescura (muito embora já sabendo tratar-se de uma tradução). E, quem sabe, através dele toda a obra do clássico. Não é preciso dizer o quanto isto é necessário na Geografia brasileira, ausente, literalmente, desse hábito.

O leitor é convidado, assim, a conferir ele mesmo a atualidade e influência desses clássicos no pensamento recente, na e para além do âmbito imediato da Geografia. E, então, descobrir que muitos conceitos e teorias atuais já se encontravam neles, a exemplo da teoria da complexidade de Edgar Morin, Henri Atlan, Isabelle Stengers e Ilya Prigogine, já presente em Max Sorre; da construção técnica do espaço de Milton Santos, já presente em Pierre George; do meio técnico e científico, também de Milton Santos, já presente no conceito de gênero e modo de vida de Vidal de La Blache; do movimento do real como instituição da diferença de Jules Deleuze e Jacques Derrida, já presente na teoria da diferenciação de áreas de Alfred Hettner e Richard Hartshorne; da Terra como um produto da interação dos seres vivos com o meio físico no planeta da teoria Gaia de James Lovelock, já presente no conceito de meio geográfico de Jean Tricart; da superfície terrestre como morada do homem dos ambientalistas, já presente em Vidal de La Blache, Jean Brunhes, Max Sorre e Richard Hartshorne; dos conflitos sociais entre os povos de vida comunitária (a exemplo de comunidades indígenas, camponesas e quilombolas) e o modo de vida e produção do capitalismo que hoje domina a teoria social brasileira, já presente em Elisée Reclus.

O leitor em questão é múltiplo. É o estudante universitário, o acadêmico e o professor da escola, em seu afã de ir ao encontro da Geografia – sobretudo se não lhes foi oferecido o contato vivo e direto com a obra dos clássicos – em suas próprias raízes. Mas é também o público em geral, interessado em conhecer a bibliografia e a essência do pensamento geográfico e assim nela encontrar uma chave de teorização dos temas atuais, atraindo-o para o conhecimento direto de sua literatura. À exceção dos livros de Reclus e Sorre, acessíveis somente em espanhol, todos os demais estão disponíveis em língua portuguesa, em edição brasileira ou portuguesa, mas de fácil acesso nas bibliotecas do Brasil. Além de que já se dispõe de um bom número de estudos das obras e dos clássicos, os aqui selecionados e outros, escritos e publicados por colegas brasileiros, indicados na bibliografia ao final do livro. Oxalá este livro estimule também sua multiplicação.

Ruy Moreira, 2008.

Livro: O pensamento geográfico brasileiro. Vol. 2

APRESENTAÇÃO

O período entre 1950 a 1970 é marcado por intenso movimento de crítica e renovação do pensamento geográfico no mundo e no Brasil. Orientada no início para o positivismo como fundamento do discurso geográfico existente – neste livro designado geografia clássica –, paulatinamente a crítica descobre no processo histórico da acumulação primitiva e na abstratividade do valor que vem com ele as origens dos problemas que se busca resolver.

No Brasil o movimento expressou-se por um elenco de obras das quais selecionamos sete – as de David Harvey, Neil Smith, Massimo Quaini, Jean Tricart, Milton Santos, Yi-Fu Tuan e Yves Lacoste – para referências de nossa análise. É certo que tratase de um critério de escolha do autor. E também é certo que é controverso o conceito de renovação aqui usado. Já foi dito por alguém que o tradutor frequentemente trai a obra que traduz. O mesmo se pode dizer do analista de ideias. É inevitável que a crítica confunda as ideias que analisa com as suas próprias. E a tal ponto que o leitor já não sabe o que é da obra e o que é do analista. Isto vale para os critérios de escolha.

Mas é a reflexão sobre as ideias, críticas e soluções desse período, mesmo que limitada a essas sete obras e autores, o propósito deste volume que o leitor tem nas mãos.

As correntes teóricas da geografia clássica que analisamos no volume 1 são aqui complementadas com a análise das novas correntes. Uma comparação sistemática é feita das ideias novas com as velhas, de modo a permitir ao leitor acompanhar e traçar seu próprio juízo sobre o movimento da renovação. Para isto, completa-se o painel da evolução histórica da geografia francesa, trazendo-a até o período dos anos 1950-1970, e acrescenta-se o da geografia norte-americana e da geografia alemã, além do quadro evolutivo da geografia brasileira até os anos 1960. Não sendo um livro de história do pensamento geográfico, mas de epistemologia, este quadro de história da evolução do pensamento francês, norte-americano, alemão e brasileiro,em sua fase de formação e amadurecimento, visa apenas oferecer ao leitor o essencial do painel necessário ao acompanhamento do trajeto analítico da renovação das ideias. As obras historiográficas do pensamento geográfico que usamos como referência estão na bibliografia.

Com o intuito de abrigar o espectro mais amplo do movimento da renovação tal como ocorreu no mundo, mas visto a partir de sua ocorrência no Brasil, o livro foi dividido em quatro partes. A primeira parte analisa o momento de auge da geografia clássica e apresenta as primeiras críticas que levam à necessidade de sua mudança nos Estados Unidos e na França. A segunda parte oferece o resumo crítico das sete obras que escolhemos para apoio da análise do movimento renovador, buscando-se reproduzir pura e simplesmente a ideia de seu autor, a partir do que entendemos por seu núcleo lógico. A terceira parte traça a síntese da teoria que cada autor oferece em seu livro como alternativa às teorias clássicas, dando-se ênfase à sua estrutura discursiva e procurando-se pontuar as ideias na forma que permita ao leitor ao tempo que conhecê-las em sua originalidade, compará-las entre si e com as teorias dos clássicos. A quarta parte, por fim, faz o balanço avaliativo da renovação propriamente, analisando-se seus pontos de avanço e suas teses.

Este volume completa-se com um terceiro, inteiramente dedicado à geografia brasileira desde o seu período de maturidade nos anos 1940-1950 até os dias de hoje.

Ruy Moreira, 2009.

Sugestões: Epistemologia da Geografia

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