13 de abr. de 2011

Milton Santos: Há mesmo um espaço virtual?

Echer

Diante desta pergunta, a primeira reação de um geógrafo será responder que “se é espaço, não pode ser virtual”. Entretanto, como essa expressão hoje se tornou um lugar comum, vale a pena retomá-la e propor uma discussão, ainda que breve.

O vocábulo ‘espaço’ é polissêmico, utilizado na linguagem familiar e popular, assim como na de especialistas de diversas áreas do saber. Fala-se, desembaraçadamente, de espaço sideral para significar o conjunto de sistemas de astros, tanto quanto de espaço social (as relações que caracterizam a vida coletiva e o seu suporte) e de espaço econômico (a trama das relações que permitem ou resultam da respectiva atividade). Da mesma maneira, os psicólogos e psicanalistas freqüentemente se utilizam da expressão para significar os condicionamentos, materiais ou não, da atividade do espírito. Mesmo entre aqueles que se consideram os autênticos especialistas do espaço — tomado aqui como sinônimo de território e suas divisões — tais como os geógrafos, arquitetos, urbanistas e planejadores, a palavra, ainda que única, é representativa de realidades diversas. E os próprios geógrafos distinguem, dentre outros, um espaço físico, dado pela natureza; um espaço humano, marcado pelas culturas; um espaço de fluxos, formado pelos pontos criados pela produção e seu movimento; um espaço banal, que seria o mais verdadeiro e completo, por abranger todos os outros e conter, sem exceção, todo tipo de atores.

Enfim, a atitude é diversa, se quem se exprime apenas utiliza da palavra para designar uma realidade ou um seu atributo, ou se deve, também, enfrentar a difícil tarefa de analisar sua constituição. Para este, consciente do acerto de sua definição ou da precisão do vocabulário adotado, o que dizem as demais disciplinas constitui uma diversão, talvez um ato de lesa majestade, no mínimo uma metáfora. Esta, como se sabe, freqüentemente provém de outras esferas do fazer ou do saber. Nesse particular, a geografia é talvez a maior tomadora e a maior provedora, porque no Planeta cabem todos os objetos e relações que definem as diversas áreas de estudo.

Como o papel da metáfora não é bem o de definir analiticamente uma coisa ou uma relação, ela pode ser tomada apenas como uma acepção ou uma espécie de reforço da expressão que se quer atingir; e o seu uso forte se esgota no próprio domínio do estilo e da produção de imagens. Não sendo um conceito, a metáfora, tomada isoladamente, está longe de fornecer um guia de entendimento e, por não permitir um verdadeiro esforço analítico, sua aplicação também não faz sistema. Pode ser grave erro e fonte de confusão admitir num determinado campo definições já atribuídas em um outro com diferente intencionalidade. O século XX multiplicou os usos da palavra espaço e o mundo da globaliz ação com o qual convivemos também se caracteriza pela profusão das metáforas. Isso se deve, em primeiro lugar, ao fato de ser ele próprio marcado pelo reino da imagem, fenômeno que também se relaciona com a necessidade prática da economia e da política de chamar a atenção para uma coisa ou relação através apenas de um seu aspecto ou parte e não da totalidade da coisa. 

O objetivo é prender o observador, mesmo que superficialmente, acorrentando-o aos desígnios do  propagandista. Daí o papel dos imaginários na produção do mercado, quando o que se mostra, com luxo de exposição, para atrair clientes, é apenas um pedaço, às vezes, uma extremidade do todo. A “verdade” dessa ponta é utilizada para atribuir veracidade também ao resto.

Mas nem sempre há esse tipo de intenção no uso das metáforas e acreditamos ser esse o caso do uso indiscriminado da palavra espaço. Por isso, da mesma maneira que se fala em inteligência artificial, que seria a inteligência das máquinas, também se pode falar em espaço virtual. No primeiro caso, trata-se do  congelamento na máquina de um processo intelectual anterior. Não é esse o conteúdo e a definição de soft, isto é, do programa? Na verdade, o chamado “pensamento” da máquina já é uma repetição, já que é limitado por tal programação.  

Quanto ao espaço virtual, devemos nos lembrar de que a realidade do espaço supõe trabalho, por isso ele não é apenas material ou físico e está sempre ganhando novas definições substantivas com as mudanças históricas. Aliás, o espaço supõe um trabalho que é sempre multidimensional. O espaço virtual em si mesmo não é trabalho, mas pode ser uma sua condição. O espaço virtual apenas permite comunicar o resultado de um trabalho real, multidimensional. Condição imutável do trabalho, portanto unidimensional, apenas autoriza o trabalho, mas não o constitui. Sem dúvida, ele se apóia no espaço real, genuíno, de nossa definição como geógrafo, mas ele próprio não é espaço. Levando a discussão a um extremo, e como os adjetivos não sobrevivem sem os substantivos que modificam, nem mesmo é virtual. Mas não queremos ser extremistas. Não há como recusar a utilização de um vocábulo já antigo para exprimir uma nova situação. Mas é sempre prudente distinguir conceito de metáfora.

O uso da metáfora, da imagem, não pode ser vetado. Será bom, todavia, no mundo que é movido por tantos
enganos e percepções fragmentadas, que isto seja claramente entendido. 

Uma coisa é a importância dessas formas de ser da informação, tão úteis à construção cotidiana da história, cuja aceleração autoriza, como é o caso do espaço virtual. Outra coisa são suas denominações.

Fonte: SANTOS, Milton. Há mesmo um espaço virtual? Disponível na internet in http://www.hypertexto.com.br/publyhpertextopor/. Elaborado em 21/2/2000 e acessado em 10/2/2001.

8 de abr. de 2011

Da espacidade ao espaço real: o problema da teoria geral a propósito do simples e do complexo em Geografia


                                        Ruy Moreira**

            A complexidade é um tema explicitamente presente na Geografia desde Sorre. Mas a referência na paisagem, um complexo de singularidades aparentes, firmou-a no consenso público como um saber da simplicidade. Corre-se o risco de repetir-se com a abordagem do complexo – a grande teoria – o erro do simples – a espacidade cartesiana – que ainda é a dominante em Geografia. Permanece o problema da relação entre a grande teoria e a pequena teoria que tem sido o grande complicador. Um estudo comparado de Tricart e Brunhes ajuda a esclarecê-lo.
            Resumindo o modo como vê a dinâmica do fenômeno geográfico, diz Tricart que deixada entregue a si mesma a morfogênese revela-se a inimiga da pedogênese, há que apelar-se para a fitoestasia, termo que prefere a bioestasia por explicitar ser da vegetação, não de um vago bio, o papel de regulador das contradições que se passam na “infraestrutura” da natureza (Tricart, 1977). Brunhes já há tempo viera na mesma linha, teorizando sobre os efeitos epistêmicos desiguais de o geógrafo optar pela localização ou pela distribuição no primado do enfoque do fenômeno geográfico, ao observar que o olhar orientado na localização prioriza a imobilidade e a permanência, ao passo que o olhar orientado na distribuição prioriza o movimento e a transformação (Brunhes, 1962).
            Ligados numa relação de ontem e hoje Tricart e Brunhes são duas formas clássicas de conceber a Geografia e o fenômeno geográfico – cuja existência para ambos é ponto pacífico – como dialética e complexidade. Mesmo que para se apreendê-las às vezes em Geografia, uma ciência indutivo-dedutiva, se tenha que ser cartesiano-newtoniano (Moreira, 2006 e 2009).
            Todavia, no geral da literatura geográfica existente, só aqui e ali a Geografia aparece como uma forma de abordagem do mundo como complexidade e o espaço como modo de referência do complexo. O que tem a ver com o conceito de espaço – o simples-claro cartesiano – e o hábito de ver e sentir em Geografia que daí emana com que esta literatura trabalha.

A espacialidade

            Significa isto dizer que freqüentemente destoamos da proposta da geografia clássica. Às vezes até por desconhecê-la. E Brunhes é quem melhor a ilustra. A leitura geográfica começa para Brunhes pela localização. Sem localização, nota, não existe fenômeno geográfico e Geografia. Isto embora o ato de localizar por si mesmo não garanta a natureza geográfica do fenômeno e do saber. Para que seja geográfico e Geografia, há que combinar-se a localização à distribuição e ver-se aquela por meio desta.
            A distribuição é para Brunhes a rigor distribuição de localizações. Mas o intuito de enfatizá-la como categoria diante e ao lado da localização é o de lembrar que a localização enquanto localização e caso único de constatação não tem em si qualquer valor de significação. A localização só o é por referência a uma outra localização, o que só se faz dentro do quadro da distribuição. Note-se que embora Brunhes compartilhe da noção de que o fato único e/ou isolado não seja passível de explicação científica, concordando com Vidal de que o homem só age em grupo, não é disso que ele está falando, mas da impossibilidade ontológica de uma localização só e única.
            É assim que localização e distribuição formam um par e uma reciprocidade. E Brunhes proponha irmos no sentido do primado da distribuição sobre a localização na leitura geográfica dos fenômenos. Isto porque se a localização enfatiza o fixo, a distribuição enfatiza o fluxo do fixo, como Smith dirá adiante (Smith, 1988). Por isso, uma vez composto o quadro da distribuição, diz Brunhes, é preciso voltar o olhar para a pontualidade das localizações, para vermos cada localização agora por suas posições correlativas, a categoria da localização mudando de qualidade para se transfigurar na de posição. Eis aqui um ponto essencial da teoria e do método de Brunhes. A transfiguração da localização em posição (ora vista na tradição clássica como posição geográfica e ora como posição astronômica) esclarece o porque da impossibilidade da localização única e em si e introduz na leitura geográfica a dimensão metodológica de se ver o conceito, pelo seu caráter mutante, dentro do andamento do movimento processual das categorias, a categoria vindo a ser o que é dentro do seu movimento na leitura: a localização era uma coisa quando do ponto do começo, o de ida da localização para a distribuição, e passa a ser outra no ponto seguinte, quando indo de retorno de volta da distribuição para a localização. Um movimento transfigurativo do conceito que irá se repetindo no movimento de complexificação da leitura do fenômeno geográfico.
            A posição indica o caráter relacional das localizações e ver o todo a partir dela transforma a distribuição numa grelha de posições. Cada localização é o que é por conta e na medida do seu lugar no contexto interrelacional na grelha de posições da distribuição, na perspectiva da qual a localização deixa de ser um ponto estático no tabuleiro das pontualidades para vir a ser um fato de significação definida (política, sígnica, astronômica).
            Impossível aqui não nos remetermos ao sentido do conceito do espaço relacional de Harvey, no propósito de introduzir, num acréscimo de dimensão ao conceito do absoluto e do relativo que Newton estabelece como base do pensamento da Física mecânica, um novo olhar geográfico sobre o espaço, com o claro intuito de referendar no caráter posicional das localizações o espaço como um ente em movimento.
            É quando a grelha das posições faz da distribuição um arranjo espacial. Isto é, um todo de arrumação dinâmica onde o fenômeno ganha forma geográfica e troca posições funcionais. E, assim, uma estrutura dinâmica, não uma geometria de pontos fixos, de onde Brunhes extrai a idéia da organização espacial dos fenômenos como um troca-troca de cheios e vazios, num ordenamento de arrumação locacional que se refaz continuamente, uma vez que o que hoje é cheio, amanhã se torna um vazio, e o que é vazio se torna cheio.
É quando o domínio territorial dos fenômenos se redefine e a distribuição vem a se clarear como uma re-distribuição permanente. E o arranjo, por sua vez, se faz configuração, um arranjo visto como domínio e ordenamento, a distribuição de localizações olhada pelos olhares dos sujeitos espaciais.
            Aqui se dá o ponto de encontro dos esquemas discursivos de Tricart e Brunhes.

A espacidade

            O olhar da espacidade bloqueou-nos, todavia, a percepção dessa riqueza de pensamento (Moreira, 2007). Sorre chama insistentemente a atenção para o complexo (Sorre, 1961). George o sistematiza no conceito da situação (George, 1973). E em Smith agonicamente explode (Smith, 1988). Mas impediu-nos essa evidência esse reducionismo do claro e do simples de Descartes dominante na ciência (Prigogine e Stengers, 1984).
            A visão moderna do espaço (e do tempo) é uma invenção cartesiana. Sustenta-a uma certa abstratividade da espacialidade corpórea do fenômeno destinada ao fim de viabilizar a criação paradigmática da ciência moderna. Caracteriza essa ciência um duplo parâmetro: de um lado a sua fundação nos dados empíricos da experiência sensível e de um outro no trato matemático desses dados. Para tanto, era preciso conferir ao mundo do dado empírico a imanência de um conteúdo intrinsecamente quantitativo, que à investigação científica bastaria evidenciar num enunciado de clara formulação matemática. O espaço cartesiano é esse mundo.
            É Francis Bacon (1561-1626) o teórico que estabelece a experiência sensível e a  ordenação matemática como pressupostos. Mas é René Descartes (1596-1650) o que introduz o fundamento geral sem o qual a efetividade do projeto de Bacon não viria a conhecer a luz da modernidade. Para Bacon é o que diz nossa sensibilidade do corpo a facticidade empírica a se explicar e compreender. Mas trata-se para ele de um conhecimento sensível, não ainda o conhecimento. Para tanto, haveria que se corrigir os equívocos e imprecisões da percepção sensível, traduzindo-os na linguagem precisa e exata do rigor matemático. Como, todavia, traduzir sentimentos de natureza qualitativa em números, transformando qualidade em quantidade? Através o uso dos instrumentos de medição, diz. E como traduzir tudo isso em lei? Através a generalização matemática a que se chega pelo caminho da indução. Entretanto, foi a Galileu Galilei (1564-1642) que coube a tarefa de demonstrar a exeqüibilidade do método experimental preconizado por Bacon. E a Isaac Newton (1642-1727) a de sistematizar no geral o conhecimento adquirido por esse meio, consolidando-o através a enunciação da lei da gravidade como o paradigma de lei universal e da Física mecânica como o seu corpus teórico mais acabado.
            Coube, porém, a Descartes fundar essa matemática do fundamento e declarar o espaço como sua forma geral de existência. Descartes, no entanto, mais não está que contextualizando para o presente a velha metafísica rabínica do espaço – instituída como fundamento da constituição do monoteísmo –, trocando seu conteúdo e mantendo seus atributos gerais para assim refundá-la em forma nova (Moreira, 2007). Na metafísica rabínica a divindade é o conteúdo do espaço. Deus é um ser universal e único, o mesmo para toda a humanidade, por seu atributo de ubiqüidade, isto é, pela propriedade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo. E o espaço a sua condição de universalidade. É o espaço, transformado no corpo de Deus, por sua natureza de uma extensão infinita, ilimitada e contínua, isto é, uma totalidade isotrópica, sem começo nem fim, e por isso mesmo absolutamente universal, o ente que vai permitir a Deus a ubiqüidade da onipresença, onipotência e onisciência em termos cósmicos. Descartes converte essa metafísica teológica numa metafísica matemática. E Newton vai partir de Descartes para fundar no discurso do absoluto e do relativo a Física mecânica e com ela instituir o padrão do que virá a ser o perfil paradigmático da ciência moderna.
            Contestam, entretanto, esse conceito Gottfried Leibniz (1646-1716) e Baruch Spinoza (1632-1677), seus contemporâneos, Spinoza concordando com o fundamento universal do conceito de Descartes, Leibniz discordando dele completamente. Para fundamentar seu conceito discordante, Leibniz empreende o retorno ao duplo aristotélico, enunciando-o na forma da mônada.
A rigor, não há um conceito de espaço na filosofia clássica. Tanto Platão quanto Aristóteles recolhem o que vem da tradição rabina, a eles chegada por intermédio dos eleatas, Zenão à frente, Platão no Timeu e Aristóteles na Física. Todavia, é o conceito de lugar que de fato vemos em Aristóteles. Seu ponto de partida é o espaço como uma propriedade do corpo, um espaço definido como uma extensão limitada, descontínua e finita, conformemente com o corpo de que é atributo. Dessa evidência empírica, diz Aristóteles, é que caminharíamos, mas no plano da lógica, para entender um conceito de cunho geral: do limitado pode-se inferir o ilimitado, do finito o infinito e do descontínuo o contínuo, deduzindo do espaço do corpo um espaço que vai de encontro ao conceito absoluto e isotrópico do antigo rabinato hebreu. É o duplo aristotélico. Leibniz parte do espaço-corpo de Aristóteles, descartando o espaço-extensão universal. Não há, diz ele, o espaço isotrópico e universal, de Descartes ou de Aristóteles, uma vez que a matéria se organiza na forma individual e delimitada das mônadas. Estas são unidades mínimas de organização da matéria, estruturadas como um campo de forças e dotadas dos atributos da potência e ato aristotélicos e assim realizáveis na forma das coisas finitas, limitadas e descontínuas. Múltiplas ao extremo em suas formas de existência e em permanente movimento, é o movimento das mônadas que cria o continuum que designamos de espaço-extensão universal.
É o pensamento cartesiano que vinga, entretanto, mantendo-se como base geral da ciência moderna até quando recentemente entra em crise como paradigma, o espaço-geometria de Descartes entrando em crise junto ao pressuposto da matemática como ciência exata, o conceito de Leibniz vindo por fim a aparecer, junto à emergência da matemática do caos, da catástrofe e dos fractais (Casanova, 2006).

A geograficidade: a fonte originária do fenômeno  geográfico

            Tanto Tricart quanto Brunhes ao terem por implícito o espaço como o entrecruzamento relacional dos fenômenos em sua territorialidade correlativa estão, na prática, retomando e pondo em tela o problema do paradigma e o paradigma como problema.
            Neles o conceito do espaço é casado com os de natureza e de homem, dos quais pretende ser um fundamento ontológico, com passagem para a epistemologia. Em suas leituras visa-se dizer que a natureza e o homem estão a se organizar no espaço (assim como no tempo). Que o espaço contém, na ordenação territorial da natureza e do homem, as componentes formacionais e determinantes do modo de existência destes. E isto porque são eles entes espaciais. Tal qual na metafísica monadológica de Leibniz. Mas a forma tornada hegemônica tem incompatibilizado o espaço com esse sentido êntico do real-corpóreo.
            O espaço tal qual o entendemos é a extensão, o todo antes de mais isotrópico cujos lugares são localizações e postos na forma de uma trama reticular de distribuição que impõe aos fenômenos que os ocupam o constrangimento da distância. Esta rede de distâncias faz então do espaço uma estrutura matemática que do espaço se transfere como estrutura e organização para os fenômenos, servindo de base seja para o seu tratamento científico e seja para atuar como o fundamento da lei científica que o rege. A localização pré-determina os termos do arranjo e movimento espacial dos fenômenos e,  como num modelo quantitativo natural, a lei como uma trama de constantes matemáticas que à ciência cabe descobrir.
            O sentido posicional que Brunhes empresta à localização põe, pois, esta leitura em suspenso. A natureza escalar de sua compreensão é o fundamento: a escala mantém a singularidade da localização, ao tempo que a eleva ao plano que aponta para a universalidade. De modo que em Brunhes o entrecruzamento posicional é a alavanca dessa emergência.
            O fato é que no sentido posicional, o espaço se torna atributo do fenômeno, visto no quadro correlativo das localizações. O caráter real da localização não é o ponto geométrico que se refere a um lugar ocupado pelo fenômeno numa hipotética extensão isotrópica, mas o que ocupa dentro da trama das interações formadas entre os fenômenos a partir de seus lugares. Algo que se aproxima da ilação do conceito de Leibniz de que não é o corpo que está no espaço, mas o espaço que está no corpo, de modo que o espaço extensivo é o que vem do movimento.
            Assentado no âmbito relacional da configuração do conceito lato de Brunhes do arranjo da distribuição posicional das localizações, o fenômeno concreto passa assim a ter por conteúdo o que emana do caráter relacional dessa configuração, o caráter das relações do todo impregnando-o do seu conteúdo. Tricart pensa nestes termos o fenômeno que analisa. O real-concreto que o fenômeno é, vem do caráter relacional do arranjo configuracional de que faz parte, ajuda a formar e dentro do qual se move e desloca. É assim que ele passa e pode para Tricart ser identificado como geomorfológico ou pedológico, expressões de um ecótopo cujo conteúdo morfopedogenético é aquele que é dado ao relevo e ao solo pelo jogo regulador da fitoestasia.
            Chama-se a isto a geograficidade.

A extensão, a distância e a escala: o plano geográfico da complexidade

            A abstratividade matemática do fenômeno, o simples cartesiano transformado em corpo de ciência por Newton, é posta assim em xeque quando o fenômeno é visto em sua integral geograficidade, dado o sentido de escala que lhe é próprio. É isto que Tricart enuncia em seu dito da regulação fitoestásica sobre a tensão ecotópica. Há, porém, que se indagar porque se é assim, não foi essa a tradição que vingou na leitura geográfica. Entra aqui a cultura da espacidade.
É uma característica do construto de Brunhes o caráter implícito da presença da extensão, da distância e da escala junto às categorias discursivas da sua teoria de Geografia. Implícito, todavia estruturante do movimento transfigurativo do conceito, que leva a distribuição pura e simples a sucessivamente transformar-se no conceito mais completo e complexo da configuração. Por ser um sistema de localizações, a distribuição implica um âmbito e um marco-limite de abrangência, que é a extensão; por ser relacional e situacional, uma referência-base do plano reticular das interações, que é a distância; e por ser uma estrutura de entrecruzamentos, uma seqüência de níveis, que é a escala. É, pois, a escala, a soma de todas as categorias coagulantes do todo, o elemento que faz do fenômeno um fato geográfico e o põe de imediato na qualidade de uma estrutura complexa, contrarrestando a leitura habitual da Geografia como uma descrição lisa, simplória e empirista. Chave da geograficidade, é a inobservância, pode-se dizer assim, da escala como a categoria de centro das leituras geográficas, ponto de amarração da metamorfose do fenômeno em fato geográfico e conceito coagulante da totalidade em Geografia, precisamente essa inobservância a resposta.
O fato é que embora vista a pele da função axial e de fonte geratriz do próprio modo de olhar e da linguagem geográficos, a escala raramente é tomada nessa acepção, pelas razões acima, talvez pelas leituras em geral muito rápidas dos clássicos como Brunhes, mas por conta de cuja ausência é que vemos o discurso geográfico reduzir-se à condição de reprodutor do nível do simples e do isócoro do geometrismo cartesiano,
            Categoria do ver e do falar por excelência em Geografia, a escala se caracteriza nas obras de Brunhes e Tricart por seus três significados: o embutimento, a sobreposição e o entrecruzamento. A visualização da inserção dos pontos da localização no plano horizontal da distribuição da teoria de Brunhes é um exemplo de embutimento. A relação de ação regulatória da vegetação sobre as tensões de base da morfogênese e pedogênese que é passada do plano vertical da biocenose para o ecótopo da teoria de fitoestasia de Tricart é um exemplo de sobreposição. E a seqüência de interseções entre os planos respectivos das situações, ainda da teoria de Brunhes, é um exemplo de entrecruzamento. Três dimensões que de certo modo se hierarquizam: o embutimento está implícito na sobreposição, a sobreposição está implícita no entrecruzamento e o entrecruzamento enfeixa o todo, expressando nesse encaixe toda a complexidade da escala do entrecruzamento posicional como geograficidade.
            Quando Tricart arruma numa superposição de três planos o ecótopo (o par morfogênese e pedogênese), a cobertura vegetal (o plano da fitoestasia) e o restante da biocenose (a relação flora-fauna-homem) e os apresenta em sua relação de reciprocidade de interação, não faz mais que aplicar este conceito em regra. A presença da vegetação, fixando com suas raízes o solo, prende aos limites do necessário o movimento do processo morfogenético, agindo assim de cima para baixo. Ao extrair desse mesmo solo os sais minerais que vai juntar ao carbono que extrai do ar, transformando substâncias inorgânicas em orgânicas que irão por sua vez alimentar toda a cadeia trófica unindo num processo de existência os elos que mantêm viva toda a parte restante da biocenose em que se inclui o próprio homem ao redor da realização de sua vida e subsistência, age por sua vez de baixo para cima. Posta estrategicamente nessa localização de plano de interseção do biótico e do abiótico, que no fundo é a relação biótopo-biocenose, a vegetação age para baixo e para cima e nesse ato embute, sobrepõe e entrecruza tudo e todos os pontos posicionais e elos de articulação da escala geográfica, compartilhando com a ação do homem todo o governo da imensa complexidade estrutural que isto significa.
            Mas é a espacialidade diferencial de Lacoste o exemplo mais rico da escala do entrecruzamento posicional como a categoria geográfica da complexidade. Lacoste recorta o espaço segundo a natureza do fenômeno no que designa de conjunto espacial. Cada recorte é depois visto no quadro geral dos recortamentos de interseção que cada qual faz com os demais. O todo desse quadro global de múltiplos entrecruzamentos é o que Lacoste designa de espacialidade diferencial. Por ser a espacialidade diferencial um plano de multiplicas interseções, o embutimento e a sobreposição não se fazem aqui num plano propriamente horizontal, mas como diagonais que se cortam, favorecendo a transformação do entrelaçamento posicional em um jogo de olhares em que se pode ver cada recorte em seu plano locacional face os demais, cada recorte servindo de plano de mirante do todo. Deslocando-se entre esses planos, o olhar do observador obtém então um resultado paisagístico diferente, cada plano vindo a ser um nível distinto de representação e de conceitualização. E é isto a escala (Lacoste, 1988).
            Dessa característica que vincula escala e multiplicidade de paisagens, numa derivação direta da conceitualização subjetiva e temporal do espaço da teoria da relatividade de Einstein, Lacoste extrai o conceito da escala como um fenômeno qualitativo, sugerindo um perfil mais qualitativo que quantitativo, sem abandonar o conceito matemático da tradição propriamente. É assim que propõe uma classificação dos espaços em sete níveis, que designa de ordens de grandeza, indo da primeira grandeza, o plano dos conjuntos espaciais da ordem de dezenas de milhares de quilômetros, à sétima, o plano dos conjuntos espaciais da ordem de metros. Ordens de grandeza que se assemelham à taxonomia das ordens de meio ambiente de Tricart, incorporando a taxonomia de Georges Bertrand, onde Tricart distingue, correlativamente às ordens de espaço de Lacoste, zona, domínio natural, região natural, geossistema, geofácies e geótopo. São duas taxonomias que parametram no olhar da escala dos entrecruzamentos posicionais o olhar do complexo geográfico suprimido pelo olhar do mais claro e mais simples do método cartesiano-newtoniano (sinônimo da abstratividade quantitativa) e pela fragmentação positivista.
Tudo isso vai ao encontro de Sorre, o teórico do complexo por excelência em Geografia. Dedicado à constituição de uma geografia ecológica, Sorre vê o fenômeno geográfico como um embutimento, sobreposição e entrecruzamento de complexos, cujo resultado final é o ecúmeno. Centrado na relação homem-meio, Sorre parte do complexo alimentar, ao qual entrecruza, como níveis de complexidade igualmente mais simples, o complexo do vestuário e o complexo das habitações, e mesmo o complexo bélico. Do complexo alimentar, em função do regime dietético que o dirige, vem, ou pode vir, o complexo patógeno, num encadeamento alimentação-dietética que vai dar no complexo nosológico e na fundação da geografia médica. Encima-os o complexo técnico, variável segundo os gêneros de vida, um todo formado da combinação de hábitos-costumes-meio que se desdobra em outros tantos complexos, como o complexo agropastoril, fortemente casado aos primeiros, o complexo industrial-urbano e o complexo das circulações, este último atravessando e articulando na abrangência todos os demais. São todos eles complexos encaixados em rede, enfeixados pelas diferentes formas de sociabilidade (a família, a nação e o Estado) e resultando num ecúmeno humano que é um complexo de complexos hierarquizados e interligados em rede.

A complexidade e o todo da superfície terrestre como sentido unitário

            Talvez por essa razão Lacoste tenha advogado o que designa projeto unitário: a unidade fenomênica da superfície terrestre é uma condição necessária a qualquer olhar de complexidade em Geografia. O alcance do todo pode vir de qualquer de suas partes, mas a totalidade é a base do real e das explicações.
            Todavia, há que pré-estabelecer-se que totalidade de referência ou de alcance está-se tomando por base. Um estudo de relevo pode tomar o quadro geológico da Terra. Um estudo de clima o quadro meteorológico. Um estudo de população a sociedade. Seja, como for, em cada um desses todos é o todo que leva à complexidade como real e parâmetro.
            Por tradição e perfil científico, é a relação homem-meio, hoje compreendida como relação sociedade-natureza, a totalidade de referência dos fenômenos em Geografia. É o que vemos em Tricart, Brunhes e Sorre, e à qual Lacoste se refere por âmbito do projeto unitário. Todavia, relação sociedade-natureza vista nos parâmetros dos efeitos de sua organização espacial. E portanto das determinações da relação sociedade-espaço.
            Durante um tempo entendeu-se pensar sociedade-natureza e sociedade-espaço como um duplo alternativo. Epistemologicamente podia-se centrar o olhar geográfico numa relação como noutra. Uma leitura mais atenta ao próprio modo como a bibliografia clássica lidou com estes parâmetros entretanto mostra não se tratar de um duplo, mas de um só referencial de leitura, a que toma a relação sociedade-natureza (homem-meio ou homem-natureza, como for preferível designar) como conteúdo – o metabolismo do trabalho e seu desdobramento na hominização do homem sendo a essência – e a relação sociedade-espaço como forma determinante. Assim equacionado, o tema da análise geográfica é a complexidade da relação homem-meio, mas compreendida à luz de como esta relação se dá e se determina em cada recorte de área da superfície terrestre a partir do modo de configuração do seu arranjo do espaço (no sentido brunhiano). O ser do homem, um ser histórico social-natural, eis o que se busca compreender por este viés de relação sociedade-natureza-espaço (Silva, 1991).
            Isto significa que a condição humana começa para as considerações da Geografia na necessidade do homem transformar a natureza em vida, dar curso ao que é próprio do ser da natureza que ele é, dependente de alimentar-se, vestir-se e habitar para sobreviver, mas para realizá-la na forma que resulta dessa própria ação de ele mesmo transformar a natureza em meio de sua reprodução como ser vivo, ele como  ser social, num movimento de salto do reino da necessidade para o reino da liberdade. Tudo isso implicando num processo de ação contínua, repetitiva, dependente agora das condições materiais da repetição permanente, que, afinal, é a organização do arranjo do espaço, a relação de transformação sociedade-natureza resolvendo a um só tempo a tarefa da produção dos meios de subsistência e da produção dos meios de sua reprodução em caráter contínuo e ampliado, e assim se transformando numa relação sociedade-espaço em que o espaço intervém como condição de existência e reprodução.

A dialética da complexidade geográfica

            O espaço como realização e condição de existência e reprodução, uma relação travada seminalmente no âmbito metabólico da relação homem-meio, eis em que consiste a síntese da complexidade em Geografia. A sua forma de dialética. Há uma dialética dos contrários intrínseca à própria essência da relação homem-meio, a luta pela sobrevivência do homem-ser-natural, que puxa para dentro de si a organização espacial e se transforma a si mesma em relação homem-espaço. Uma dialética de dinâmica estrutural tensa. A contradição homem-natureza se transfere e se elucida na contradição homem-espaço. E o espaço, um “de dentro” que atua como um “de fora”, vira uma determinação interno-externo histórica das formas e movimentos da relação sociedade-natureza. Liberdade que resolve a necessidade, a equação espacial se torna, assim, por si mesma contradição. Seu arranjo pode determinar a hominização ou bloqueá-la, a depender do seu caráter social.
            O modo de produção da sociedade é o modo de produção do seu espaço. E vice-versa, o modo de produção do espaço é o modo de produção da sociedade. Eis o que, desde Milton Santos, a análise percuciente das obras e teorias dos clássicos revela (Santos, 1978). De Brunhes já se infere que o modo do arranjo é o aspecto determinante.
            Vimos alhures que a depender da forma como o dado posicional se defina, assim se definirá a forma da determinação do espaço (Moreira, 2007a e 2007b). Se postas as localizações numa relação referidas a um centro, passam o arranjo e todo o elenco das relações a ser vistos por referência a este centro. Se postas numa relação de referência equivalente entre si mesmas, passam o arranjo e o todo a ser vistos por referência à equivalência. Centralidade ou alteridade, hierarquia ou equipolaridade, eis a questão, em suma. Na condição de centralidade a contradição ganha forma, se explicita e vem à tona. Na de alteridade, fica latente, se dissolve e se soluciona na própria equirrelação.
            É assim que a relação homem-espaço é uma contradição do segundo tipo nas sociedades comunitárias. E do primeiro tipo na sociedade burguesa. Massimo Quaini e David Harvey dão a dimensão dessa tensão na sociedade moderna.
Quaini focaliza no momento de instituição da acumulação primitiva a origem do problema (Quaini, 1979). O processo da acumulação primitiva vai flagar a humanidade no estágio ainda, in totum ou residualmente, como no caso do feudalismo, do modo comunitário de vida. O homem está aí em relação de caráter comunitário com os outros homens e por isso mesmo com a natureza enquanto metabolismo e condição geral de trabalho e produção. A acumulação primitiva vai quebrar justamente este elo. Ao separar o homem das condições gerais do trabalho e da produção, a começar do elo estrutural com a terra, por intermédio da instituição da sua apropriação privada, a acumulação primitiva dissolve o centro de referência do modo de vida existente e age como o preâmbulo de todo processo de desapropriação e reapropriação privada dos meios de vida que vai lançar a sociedade humana nas tensões modernas de classes.
            Harvey defronta-se com esta sociedade já constituída e analisa o efeito social do seu arranjo do espaço (Harvey, 1980). Mostra o modo de determinação desse arranjo desde o geral da metamorfose do solo em espaço, via os beneficiamentos, no campo como na cidade, até o específico das acessibilidades urbanas, analisando os efeitos da combinação da renda monetária e da renda fundiária na cidade, com centro crítico-analítico no conceito da justiça distributiva territorial.

Dando conta do simples e do complexo em Geografia: a grande e a pequena teoria

            A Geografia notabilizou-se no senso público como a ciência da leitura da paisagem, o saber que descreve e explica o mundo pela dialética do imediato e do mediato, a fusão dessas vertentes sendo o real-concreto. Pouco se depreendeu, todavia, mesmo quando se lia com atenção os clássicos, o sentido da complexidade implícito nesse modo de enfoque tão simples. Seja como for, mais que uma descrição dos elementos compósitos da paisagem de um recorte de espaço, como, no geral, e metodologicamente veio a se conceber, seja a partir da tradição regionalista vidaliana e seja da diferencial de áreas hettneriana, ler a paisagem sempre significou para o senso público apreender-se em Geografia o fenômeno ali onde ele se encontra em toda sua complexidade: a superfície terrestre.
Diferentemente do paradigma laboratorial haurido da Física, em Geografia não se pode analisar o fenômeno por suas referências quantitativas essenciais, “mantidas constantes as demais condições de ambiente”, isto é abstraindo-se da espessa camada de relações espaciais em que e como ele existe. O ambiente integral, isto é, a coabitação espacial – e a coabitação espacial, em toda sua dimensão escalar de entrecruzamento posicional, é seja para Vidal e seja para Brunhes o si mesmo da análise geográfica –, eis o foco e o enfoque e o que faz do fenômeno um fato complexo e geográfico.
Como, então, dar conta de uma ordem tão total de complexidade? Fazendo-se, podemos dizer assim, a passagem necessária da grande teoria para a pequena teoria. O que significa romper com a cultura da espacidade do simples-claro cartesiano, pondo o foco na escala. E sobre essa base erigir uma teoria geral em Geografia.
Toda tradição geográfica, gerações a fio, prendeu-se ao paradigma da ciência de síntese. Se de um lado isto era o ponto de reconhecimento do tema e do caráter de complexidade do enfoque do real em Geografia, de outro lado era também a instituição do generalismo como enfoque que lançou o trabalho geográfico num certo grau de esterilidade. Sabemos que este foi um dos fundamentos da crítica de Schaefer e de todo o teorético-quantitativismo que o seguiu (Schaefer, 1977; e Christofoletti, 1985). A equação, no entanto, estava ali perto, nas mãos dos clássicos, criadores de matrizes teórico-metodológicas, na forma das categorias centrais da Geografia. Quando Milton Santos observa ter mais importância discutirmos a definição epistemológica do objeto, para ele o espaço, que a definição ontológica da Geografia – esta viria na medida daquela –, no fundo era isto que queria dizer.
Que categorias centrais são essas? Eis o cerne do debate. Já de um tempo optamos por três: a paisagem, o território e o espaço (Moreira, 2007c). A paisagem remete ao próprio âmbito da superfície terrestre enquanto campo objetual, ao tempo que é a categoria do empírico-concreto a se dialetizar, isto é elevar-se à concretude, no sentido do concreto de Marx, em Geografia (Marx, 1999; e Kosik, 1969). Brunhes oferecera as alternativas de operar-se essa leitura na direção do que para ele é o concreto em Geografia, a configuração do espaço, para ele o real-concreto em que a paisagem se transforma enquanto forma visível da relação sociedade-natureza sócio-naturalmente organizada, apontando para a localização, a distribuição, a distância, a extensão, a posição, o arranjo, a configuração e a escala em suas interações como as categorias da leitura. O território teórico-metodologicamente vem a seguir. É a categoria em que, pelo prisma do domínio, que é como concebemos território, a paisagem se metamorfoseia no transcurso da leitura, vindo a converter-se, ao ser lida pelo elenco daquelas categorias (na verdade subcategorias do espaço), numa configuração de domínios que a um só tempo a explicita e prepara para sua culminância na estrutura do espaço. O espaço é a culminância, o real-concreto em que, por intermédio da mediação da relação dominial-territorial, a paisagem, a forma que de início se apresenta à percepção como modo de aparecimento do real, por fim se explicita e se transforma no real-real.
É onde o problema do processo de gênese da teoria geral em Geografia – a grande teoria transformada na teoria geral da particularidade – sobressai-se em toda sua plenitude.
Toda teoria em ciência significa por em relação de transposição a fronteira da grande teoria e da pequena teoria. Chamo de grande teoria ao referencial mais geral no qual a ciência vai buscar, enquanto forma particular de conhecimento (a pequena teoria), suas referências de método e explicação. E de pequena teoria à meta-física particular que daí resulta.
Mas transpor a grande teoria para o plano da pequena é fazer o pensamento geral passar pelo filtro crítico da mediação das categorias específicas da pequena teoria, sob cuja base e forma a teoria mais geral vai se assentar. No caso da Geografia, sujeitar a grande teoria aos ditames do filtro de mediação da tríade paisagem-território-espaço, já se considerando o filtro de pente-fino das subcategorias do espaço, que a converterá na forma vocabular e conceitual da ciência geográfica. Tarefa que parece tão mais fácil quanto mais haja coincidências do universo categorial da grande teoria e da teoria geográfica – como o anarquismo para Reclus, o funcionalismo para Vidal, a intuição bergsoniana para Brunhes, o marxismo para Tricart, a fenomenologia para Yi-Fu Tuan –, mas que se revela canto de sereia porque sujeita à exigência de se ter os pés firmemente fincados em clara definição de rol e conceito das categorias centrais da particularidade (Moreira, 2008 e 2009).
E tem sido essa a dificuldade. Como não raro acontece de não se fazer qualquer distinção entre uma e outra, ocorre de normalmente se transportar a Geografia, a pequena teoria, para o plano de grande teoria, numa enorme confusão de mediações e campo, quando é o caminho do movimento inverso de levar a teoria geral, mediada pelas categorias geográficas, a ganhar o conteúdo e expressão próprios do ver e pensar geográfico, e, assim, transformar-se de grande teoria numa teoria geral da Geografia, a direção exata.
Ao invés de um mergulho na literatura geográfica de modo a emergir-se dela com raízes fincadas em seu modo de ver e pensar e assim dominar-se com clareza o movimento que faz de qualquer fenômeno um fenômeno geográfico, faz-se, ao contrário, todo um mergulho em toda a literatura do campo da grande teoria geral que se quer de referência, daí aplicando-se seus conceitos à leitura fenomênica, entendendo-se que se está fazendo Geografia. A confusão, então se instala, tanto maior quanto mais o olhar formal identifica a presença na grande teoria das “mesmas“ categorias – a exemplo hoje do espaço e do território – da pequena teoria geográfica. Assim, se há claro liame do relevo com o substrato e com as teorias geológicas do Planeta, no lugar de uma geografia do relevo acabamos fazendo Geologia; do clima com os elementos físicos da atmosfera e a teoria da termodinâmica, no lugar de uma geografia do clima acabamos fazendo Meteorologia; do espaço com a ação temporal do homem e a teoria da evolução das sociedades no tempo, no lugar de uma geografia da organização espaço-temporal das sociedades acabamos fazendo História. O mesmo equívoco que a muitos tem levado a fazer marxismo no lugar de uma geografia da ação, crítica literária no lugar de uma geografia da cultura, e assim por diante.

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* Texto apresentado na mesa redonda “Espaço e tempo: complexidade e desafios do pensar e do fazer geográfico” do VIII Encontro Nacional da ANPEGE em setembro de 2009.
** Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF).