25 de mai. de 2014

Vida Vidais: textos de geografia humana, regional e política

 HAESBAERT, R.; PEREIRA, S. N.; RIBEIRO, G. (org.) Vidal, Vidais: textos de geografia humana, regional e política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

O livro tem inicio com o prefácio de Paul Claval e por uma introdução escrita pelos três autores.

Em seguida, Guilherme Ribeiro se dedica a nos apresentar um Vidal preocupado com os fundamentos epistemológicos da Geografia. Os textos selecionados nessa primeira parte do livro apresenta esse caráter.

  • Prefácio ao Atlas Vidal-Lablache
  • O princípio da geografia geral
  • Aula inaugural do curso de Geografia
  • As condições geográficas dos fatos sociais
  • A geografia humana: suas relações com a geografia da vida
  • Da interpretação geográfica das paisagens
  • Os gêneros de vida na geografia humana

Na segunda parte do livro, Rogério Haesbaert mostra como o conceito de região foi sendo construído por Vidal. Para isso, além do texto de sua própria autoria, somos brindados com:

  • As divisões fundamentais do território francês
  • Estradas e caminhos da antiga França
  • Os pays da França
  • As regiões francesas
  • A relatividade das divisões regionais
  • Evolução da população da Alsácia-Lorena e nos Departamentos limítrofes
  • A renovação da vida regional. 
 
Por fim, na terceira e última parte da obra, o artigo de autoria de Sergio Nunes Pereira fala de um Vidal político, também presente nas obras selecionadas:

  • Estados e nações da Europa em torno da França (extratos)
  • A zona fronteiriça entre a Argélia e Marrocos conforme novos documentos
  • A Geografia Política: a propósito dos escritos do Sr. Friedrich Ratzel
  • O contestado franco-brasileiro
  • A missão militar francesa no Peru
  • A colúmbia Britânica
  • A carta internacional do mundo ao milionésimo
  • A conquista do Saara
  • Sobre o princípio de agrupamento na Europa Ocidental
 
Publicado em 2012 o livro Vidal Vidais: texto de geografia humana, regional e política é leitura mais do que recomendada, não só para aqueles interessados na obra e na geografia de Vidal de La Blache, como também para todos que se interessam pelo pensamento e a epistemologia da Geografia.

O espaço e seus elementos: questões de método

Fica a dica e sugestão: Espaço e método do professor Milton Santos. 


O ESPAÇO E SEUS ELEMENTOS: QUESTÕES DE MÉTODO
por Milton Santos. Do livro: Espaço e Método.
Introdução 

O espaço deve ser considerado como uma totalidade, a exemplo da própria sociedade que lhe dá vida. Todavia, considerá-lo assim é uma regra de método cuja prática exige que se encontre paralelamente através da análise, a possibilidade de dividi-lo em partes. Ora, a análise é uma forma de fragmentação do todo que se caracteriza pela possibilidade de permitir, ao seu término, a reconstituição desse todo. Quanto ao espaço, sua divisão em partes deve poder ser operada segundo uma variedade de critérios. A que vamos aqui privilegiar e tentar, através do que chamamos "os elementos do espaço" é apenas uma dessas diversas possibilidades.

1 - O que é um elemento do espaço 

Antes mesmo de tentar definir o que é um elemento do espaço, valeria a pena, talvez, discutir a própria noção de elemento. Segundo os teóricos, os elementos seriam a "base de toda dedução"; "princípios óbvios, luminosamente óbvios, admitidas por todos os homens"' (Bertrand Russel). Essa definição equivale o elemento a uma categoria, a expressão categoria sendo tomada no sentido de verdade eterna, presente em todos os tempos, em todos os lugares, e da qual se parte para a compreensão das coisas num dado momento, desde que se tenha o cuidado de levar em conta as mudanças histéricas. No caso dos elementos, essa posição, segundo Russel, teria sido aceita através da Idade Wdia e, mesmo, depois, como no caso de Descartes. Leibniz, considera que a sua propriedade essencial é força e não extensão. Os elementos disporiam, então, de inércia, pela qual eles podem permanecer nos seus próprios lugares, enquanto, ao mesmo tempo, existem forças que buscam deslocá-los ou penetrar neles. Desse modo, sendo espaciais (pela fato de disporem de extensão) eles também são dotados de uma estrutura interna pela qual participam da vida do todo de que são parte e que lhes atribui um comportamento diferente (para cada qual), como reação ao próprio jogo das forças que os atingem. A definição do elemento iria, pois, além da sugestão de Harvey (1 969) sendo algo mais que "a unidade básica de um sistema em termos primitivos que, de um ponto de vista matemático, não necessita definição", da mesma forma que a concepção do ponto na Geometria. 

2 - Os Elementos do Espaço: Enumeração e Funções
Os elementos do espaço seriam os seguintes: os homens, as firmas, as instituições, o chamado meio ecológico e as infra-estruturas. Os homens são elementos do espaço na qualidade de fornecedores de trabalho ou de candidatos a isso, seja na qualidade de jovens, seja como desempregados. A verdade é que tanto os jovens, quanto os ocasionalmente sem emprego ou os já aposentados, não participam diretamente da produção, mas o simples fato de estarem presentes no lugar tem como conseqüência a demanda de um certo tipo de trabalho para outros. Esses diversos tipos de trabalho e de demanda são a base de uma classificação do elemento homem na caracterização de um dado espaço. A demanda de cada indivíduo como membro da sociedade total é respondida em parte pelas firmas e em parte pelas instituições. A firmas têm como função essencial a produção de bens, serviços e idéias. As instituições por seu turno produzem normas, ordens e legitimações. O meio ecológico é o conjunto de complexos territoriais que constituem a base física do trabalho humano. As infra-estruturas são o trabalho materializado e geografizado na forma de casas, plantações, caminhos, etc. 

3 - Os elementos do espaço, sua redutibilidade
A simples enumeração das funções que cabem a cada um dos elementos do espaço mostra que eles são, de certa forma, intercambiáveis e redutíveis uns aos outros. Essa intercambialidade e redutibilidade aumenta, na verdade, com o desenvolvimento histórico, é um resultado da complexidade crescente em todos os níveis da vida. Desse modo, os homens também podem ser tomados como firmas (o vendedor da força de trabalho) ou como instituições (no caso do cidadão, por exemplo), da mesma maneira que as instituições aparecem como firmas e estas como instituições. Este último é o caso das transnacionais ou das grandes corporações que não apenas se impõem regras internas de funcionamento, como intervêm na criação de normas sociais a um nível de amplitude maior que o da sua ação direta e até se tornam concorrentes das instituições e, mesmo, do Estado. A fixação do preço das mercadorias pelos monopólios dá-lhes uma atribuição que é própria às entidades de direito público, na medida em que interferem na economia de cada cidadão e de cada família, e mesmo de outras firmas, competindo com o Estado na arrecadação da poupança. É certo, porém, que, no momento atual, as funções das firmas e das instituições de alguma forma se entrelaçam e confundem, na medida em que as firmas também produzem direta ou indiretamente normas, e as instituições são, como o Estado, produtores de bens e de serviços. Ao mesmo tempo que os elementos do espaço se tornam mais intercambiáveis, as relações entre eles se tornam também mais íntimas e muito mais extensas. Dessa maneira, a noção de espaço como uma totalidade impõe de maneira mais evidente, porque mais presente; e pelo fato de resultar mais intrincada, torna-se mais exigente de análise. 

4. Os elementos do espaço, as interações
O estudo das interações entre os diversos elementos do espaço é um dado fundamental da análise. Na medida em que função é ação, a interação supõe interdependência funcional entre os elementos. Através do estudo das interações, recuperamos a totalidade social, isto é, o espaço como um todo, e, igualmente, a sociedade como um todo. Pois cada ação não constitui um dado independente, mas um resultado do próprio processo social. Falando do que antigamente se chamava região urbana, o geógrafo Haggett disse que em Geografia Humana a região nodal sugere um conjunto de objetos (cidades, aldeias, fazendas, etc.) relacionados através de movimentos circulatórios (dinheiro, mercadorias, migrantes, etc.) e a energia que lhes vem através das necessidades biológicas e sociais da comunidade. Ora, essas necessidades são todas satisfeitas através do ato de produzir. É dessa forma que se definem as formas de produzir e paralelamente as de consumir, as normas respectivas à divisão da sociedade em classes e a rede de relações que a preside. É também assim que se definem os investimentos a serem feitos. Tais investimentos, cuja tendência é dar-se, cada vez mais, em forma de capital fixo, modificam o meio ecológico através de sistemas de engenharia que se superpondo uns aos outros, total ou parcialmente, vão modificando o próprio meio ecológico, adaptado às condições emergentes da produção. Dessa forma, se opera uma evolução concomitante do homem e o que se poderia chamar de "natureza," através da intermediação das instituições e das firmas. Caberia, aliás, aqui, perguntar se é válida a distinção que de início fizemos entre o meio ecológico e as infra-estruturas como elementos do espaço. Na medida em que as infra-estruturas se somam e colam ao meio ecológico e se tornam na verdade uma parte inseparável dele, não seria uma violência considerá-los como elementos distintos? Ademais, a cada momento da evolução da sociedade o homem encontra um meio de trabalho já constituído sobre o qual ele opera e a distinção entre o que se chamaria de natural e não natural se torna artificial, como Ruy Moreira (1980) recentemente indicou. A expressão meio ecológico não tem a mesma significação dada à natureza selvagem ou natureza cósmica, como às vezes se tende a admitir. O meio ecológico já é meio modificado e cada vez mais é meio técnico. Dessa forma, o que em realidade se dá é um acréscimo ao meio de novas obras dos homens, a criação de um novo meio a partir daquele que já existia: o que se costuma chamar de "natureza primeira" para contrapor à "natureza segunda" já é natureza Segunda. A natureza primeira, como sinônimo de natureza natural, só existiu até o momento imediatamente anterior àquele em que o homem se transformou em homem social, através da produção social. A partir desse momento, tudo o que consideramos como natureza primeira já foi transformado. Esse processo de transformação, contínuo e progressivo, constitui uma mudança qualitativa fundamental nos dias atuais. E na medida em que o trabalho humano tem como base a ciência e a técnica, tornou-se por isso mesmo a historicização da tecnologia. 

5 - Do conceito à realidade empírica
Quando dizemos que os elementos do espaço são os homens, as firmas, as instituições, o suporte ecológico, as infra-estruturas, estamos aqui considerando cada elemento como um conceito. A expressão conceito é geralmente traduzida como significando uma abstração, extraída da observação de fatos particulares. Mas, como cada fato particular ou cada coisa particular só tem significado a partir do conjunto em que estão incluídos, essa coisa ou esse fato é que termina sendo abstrato, enquanto o real passa a ser o conceito. Mas o conceito só é real na medida em que é atual. Isso quer dizer que as expressões homem, firma, instituição, suporte ecológico, infra-estrutura, somente podem ser entendidos à luz de sua História e do presente. Ao longo da História, toda e qualquer variável se acha em evolução constante. Por exemplo, a variável demográfica está sujeita a evoluções e mesmo revoluções. Se considerarmos a realidade demográfica sob o aspecto do crescimento natural ou sob o das migrações, a cada momento da História suas condições respectivas variam. Assim, no curso da História humana, contam-se diversas revoluções demográficas, cada qual com um significado diferente. Da mesma maneira, os tipos e formas de migrações variam, assim como os respectivos significados. Se tomamos um outro exemplo, como o da energia, a cada fase a sua utilização toma aspectos diversos desde o uso, unicamente, da energia humana, ao da energia animal, ala que se descobriram formas de domar as fontes naturais de energia. Passamos, aqui, de uma fase em que a energia utilizada é a energia mecânica ou inanimada, como no caso do motor a explosão, ao uso da energia cinética e mais recentemente da energia atômica. O mesmo raciocínio se aplica a qualquer que seja a variável. O que nos interessa é o fato de que a cada momento histórico cada elemento muda seu papel e a sua posição no sistema temporal e no sistema espacial e, a cada momento, o valor de cada qual deve ser medido na sua relação com os demais elementos e com o todo. Desse ponto de vista, podemos repetir a expressão de Kuhn (1962) quando diz que os elementos ou variáveis "são estados ou condições de coisas, mas não coisas por elas próprias". Ele acrescenta: "em sistemas que envolvem pessoas não é a pessoa que é um elemento, mas os seus estados de fome, de desejo, de companheirismo, de informação ou um outro traço de qualidade relevante para o sistema". 

6 - Os elementos como variáveis
O que foi enunciado até agora permite pensar que os elementos do espaço estão submetidos a variações quantitativas e qualitativas. Desse modo, os elementos do espaço devem ser considerados como variáveis. Isto significa, como o nome indica, que eles variam e mudam de valor segundo o movimento da História. Se esse valor lhe vem das qualidades novas que adquirem, ele também representa uma quantidade. Mas a expressão real de cada quantidade é dada como um respirado das necessidades sociais e de sua gradação em um dado momento. Por isso mesmo, a quantificação correspondente a cada elemento não pode ser feita de forma apriorística, isto é, antes de captarmos o seu valor qualitativo. Neste caso, como, aliás, em qualquer outro, a posteriori. Isso é tanto mais verdadeiro porque cada elemento do espaço tem um valor diferente, segundo o lugar em que se encontra. A especificidade do lugar pode ser entendida também como uma valorização específica (ligada ao lugar) de cada variável. Por exemplo, duas fábricas montadas ao mesmo tempo por uma mesma firma, dotadas das mesmas qualidades técnicas, mas localizadas em lugares diferentes, atribuem aos seus proprietários resultados diferentes. Do ponto de vista puramente material, esses resultados podem ser os mesmos, por exemplo, uma certa quantidade produzida. Mas o custo dos fatores de produção, como a mão-de-obra, ou a água, ou a energia, pode variar, assim como a possibilidade de distribuir os bens produzidos pode não ser a mesma, etc. Por outro lado, ainda que as duas firmas, proprietárias das duas fábricas em questão, disponham do mesmo poder econômico e político, sua localização diversa constitui um dado que leva à diferenciação dos resultados. O mesmo se dá, por exemplo, com os indivíduos. Homens que tiveram a mesma formação e que têm as mesmas virtualidades mas estão situados em lugares diferentes, não tem a mesm condição como produtores, como consumidores e até mesmo como cidadãos. Dessa forma, cada lugar atribui a cada elemento constituinte do espaço um valor particular. Em um mesmo lugar, cada elemento está sempre variando de valor, porque, de uma forma ou de outra, cada elemento do espaço - homens, firmas, instituições, meio - entra em relação com os demais; e essas relações são em grande parte ditadas pelas condições do lugar. Sua evolução conjunta num lugar ganha, destarte, características próprias, ainda que subordinadas ao movimento todo, isto é, do conjunto dos lugares. Aliás, essa especificidade do lugar, que se acentua com a evolução própria das variáveis localizadas, é que permite falar de um espaço concreto. Desse modo, se cada elemento do espaço guarda o mesmo nome, seu conteúdo e sua significação estão sempre mudando. Cabe, então, falar de perecibilidade da significação de uma variável, e isso constitui uma regra de método fundamental. O valor da variável não é função dela própria mas do seu papel no interior de um conjunto. Quando este muda de significação, de conteúdo, de regras ou leis, também muda o valor de cada variável. A questão não é, pois, de levar em conta causalidades, mas contextos. A causalidade poria em jogo as relações entre elementos, ainda que essas relações fossem multilaterais. O contexto leva em conta o movimento todo. Em outras palavras, se nós estudamos ao mesmo tempo diversas relações bilaterais, como, por exemplo, entre homens e natureza; ou entre firmas e homens (capital e trabalho); ou entre firmas e Estado (poder econômico e poder político); ou entre o Estado e os cidadãos; estaremos fazendo uma análise multivariável e considerando, ao mesmo tempo, que cada variável tem um valor por si mesma; isso, porém, de fato, não se dá. Somente através do movimento do conjunto, isto é, do todo, ou do contexto, é que podemos corretamente valorizar cada parte e analisá-la, para, em seguida, reconhecer concretamente esse todo. Essa tarefa supõe um esforço de classificação. 

7 - Um esforço de classificação é necessário
Quando nos referimos a homens, estamos englobando nessa expressão o que poderia se chamar de população ou fração de uma população. Sabemos, porém, que uma população é formada de pessoas que se podem classificar segundo sua idade, sua raça, seu nível de instrução, seu nível de salário, etc. As características da população permitem o seu conhecimento mais sistemático e o mesmo se dá com as firmas, que podem ser individuais ou coletivas, estas últimas podendo ser sociedades anônimas ou sociedades limitadas ou ainda cooperativas, corporações nacionais ou firmas internacionais. E assim por diante. Ora, cada uma dessas parcelas ou frações de um determinado elemento formadores do espaço exerce uma função diferente e também mantém relações específicas com outras frações dos demais elementos. Por exemplo, numa sociedade avançada, as crianças e os velhos mereceriam a proteção do Estado, enquanto os adultos seriam chamados a trabalhar como um direito e um dever. Assim, as relações de cada tipo de homem com o Estado não são as mesmas. As relações de cada tipo de firma com o Estado também não são idênticas. Da mesma forma, em cada momento histórico os valores atribuídos a uma profissão ou a uma faixa de idade, a um nível de instrução, uma raça, não são os mesmos. Se considerássemos a população como um todo, as firmas como um todo, a nossa analise não levaria em conta as múltiplas possibilidades de interação. Ao contrário, quanto mais sistemática for a classificação, tanto mais claras aparecerão as relações sociais e, em conseqüência, as chamadas relações espaciais. 

8 - O exame das variáveis sob o ângulo das técnicas e da organização: a questão do "lugar.'
Em cada época os elementos ou variáveis tão portadores (ou são conduzidos) por uma tecnologia específica e uma certa combinação de componentes do capital e do trabalho. As técnicas são também variáveis, porque elas mudam através do tempo. Só aparentemente elas formam a um contínuo. Se, nominalmente, suas funções são as mesmas, a sua eficiência, todavia, não é a mesma. Em decorrência das técnicas utilizadas e dos diversos componentes de capital mobilizados, pode-se falar de uma idade dos elementos ou de uma idade das variáveis. Desse modo, cada variável teria uma idade diferente. O seu grau de modernidade só pode ser aferido dentro do sistema como um todo, seja do sistema local, em certos casos, seja do sistema nacional, e ainda, para outros, do sistema internacional. Um primeiro dado a levar em conta é que a evolução técnica e a do capital não se fazem paralelamente para todas as variáveis. Também, ela não se faz igualmente nos diversos lugares, cada lugar sendo uma combinação de variáveis de idades diferentes: cada lugar é marcado por uma combinação técnica diferente e por uma combinação diferente dos componentes do capital, o que atribui a cada qual uma estrutura técnica própria, específica, e uma estrutura de capital própria, específica, as quais corresponde uma estrutura própria, específica do trabalho. Como resultado, cada lugar é uma combinação de diferentes modos de produção particulares ou modos de produção concretos. Em cada lugar, as variáveis A, B e C... não têm a mesma posição no aparente contínuo, porque elas são marcadas por qualidades diversas. Isso resulta do fato de que cada lugar é uma combinação de técnicas qualitativamente diferentes, individualmente dotadas de um tempo específico - daí as diferenças entre lugares. Por isso mesmo a Geografia pode sr considerada uma verdadeira filosofia das técnicas. Dizer que a partir das técnicas e seu uso o geógrafo deve filosofar não equivale, porém, a dizer que tudo depende da tecnologia, nem da realidade nem na sua explicação. A presença de combinações particulares de capital e de trabalho são uma forma de distribuição da sociedade global no espaço, que atribui a cada unidade técnica um valor particular em cada lugar, conforme já vimos anteriormente. Lembremo-nos, igualmente, de que as variáveis ou elementos estão ligados entre si por uma organização. Tal organização é, às vezes, puramente local, mas pode funcionar em diferentes escalas, segundo os seus diversos elementos ou suas frações. A organização se definiria como o conjunto de normas que regem as relações de cada variável com as demais, dentro e fora de uma área. Em sua qualidade de normas, isto é, de regulamento, indiferente pois ao movimento espontâneo, sua duração efetiva não é a mesma que a da sua potencialidade funcional. A organização existe, exatamente, para prolongar a vigência de uma dada função, de maneira a lhe atribuir uma continuidade e regularidade que sejam favoráveis aos detentores do controle da organização. Isso se dá através de diversos instrumentos de efeito compensatório que, em face da evolução própria dos conjuntos locais de variáveis, exercem um papel de regulador, de forma a privilegiar um certo número de agentes sociais. A organização, por conseguinte, tem um papel de estruturação compulsória, que contraria as tendências do dinamismo próprio. Se a organização seguisse imediatamente a evolução propriamente estrutural, ela seria uma espécie de cimento moldável desfazendo-se ao impacto de uma variável nova ou importante, para se refazer cada vez que uma nova combinação se completasse. Na medida em que a organização se toma uma norma imposta ao funcionamento das variáveis, esse cimento se torna rígido.
É na medida em que a economia se complica que as relações entre variáveis se dão, não apenas localmente, mas em escalas espaciais cada vez mais amplas. O mais pequeno lugar, na mais distante fração do território, tem, hoje, relações diretas ou indiretas com outros lugares de onde lhe vêm matéria-prima, capital, mão-de-obra, recursos diversos e ordens. Desse modo, o papel regulador das funções locais tende a escapar, parcialmente ou no todo, menos ou mais, ao que ainda se poderia chamar de sociedade local, para cair nas mãos de centros de decisão longínquos e estranhos às finalidades próprias da sociedade local. 

9 - O espaço como um sistema de sistemas ou como um sistema de estruturas 
 Quando analisamos um dado espaço, se nós cogitamos apenas dos seus elementos, da natureza desses elementos ou das possíveis classes desses elementos, não ultrapassamos o domínio da abstração. É somente a relação que existe entre as coisas que nos permite realmente conhecê-las e defini-las. Fatos isolados são abstrações e o que lhes dá concretude é a relação que mantêm entre si. Kosik (1967, pg. 61) escreveu que "a interdependência e a mediação da parte e do todo significam, ao mesmo tempo, que os fatos isolados são abstrações, elementos artificialmente separados do conjunto e que unicamente por sua participação no conjunto correspondente adquirem veracidade e concretude. Da mesma forma, o conjunto no qual os elementos não são diferenciados e determinados é um conjunto abstrato e vazio".
Os diversos elementos do espaço estão em relação uns com os outros: homens e firmas, homens e instituições, firma e instituições, homens e infra-estrutura, etc. Mas, como já observamos, não são relações apenas bilaterais, uma a uma, mas relações generalizadas. Por isso se pode dizer que eles formam um verdadeiro sistema, também pelo fato de que essas relações não são entre as coisas em si ou por si próprias, mas entre as suas qualidades e os seus atributos. Tal sistema é comandado pelo modo de produção dominante nas suas manifestações na escala do espaço em questão. Isso coloca de imediato o problema histórico. Pode-se também falar na existência de subsistemas, formados exatamente pelos elementos dos modos de produção particulares. O sistema é comandado por regras próprias ao modo de produção dominante em sua adaptação ao meio local. Estaremos, então, diante de um sistema menor ou correspondente a subespaço e de um sistema maior que o abrange, correspondente ao espaço. Cada sistema funciona em relação ao sistema maior como um elemento, enquanto ele próprio é, em si mesmo, um sistema. Caso o subsistema a que referimos seja desdobrado em subsistemas, a mesma relação se repete, cada um dos subsistemas aparecendo como um elemento seu, ao mesmo tempo em que é também um sistema, se se consideram as suas próprias subdivisões possíveis. E cada sistema ou subsistema é formado de variáveis que, todas, dispõem de força própria na estruturação do espaço, mas cuja ação é de fato combinada com a ação das demais variáveis. As relações entre os elementos ou variáveis são de duas naturezas: relações simples e relações globais. Também se pode dizer, como Harvey (1964, pag. 455), que elas são: seriais, paralelas e em "feed-back". As relações seriais são sobretudo relações de causa e efeito, na medida em que um elemento é causa de uma modificação no outro e assim sucessivamente, até que ele próprio, o primeiro, seja também afetado. O que se cria é uma verdadeira série de ações. Mas, há também o caso de ações resultantes da ação de um elemento, por exemplo: aq afeta uma relação pré-existente aj-aj. Nesse caso se fala de relação paralela. Há um outro tipo de relações estudadas mais recentemente pela cibernética, isto é, a relação ai-ai na qual o movimento e as modificações de cada elemento (ou de cada variável ou sistema) se dão a partir de sua própria estrutura interna. Nos dois primeiros casos as ações são externas e no terceiro as mudanças se dão pela simples existência da variável: existir é mudar. No primeiro caso citado, ainda segundo Harvey, trata-se de uma relação simples, isto é, uma relação de causa e efeito, enquanto que as relações paralelas e de feed-back seriam relações globais. A verdade é que seja qual for a forma de ação entre as variáveis ou dentro delas, não se pode perder de vista o conjunto, o contexto. As ações entre as diversas variáveis estão subordinadas ao todo e aos seus movimentos. Se uma variável atua sobre uma outra, sobre um conjunto delas, ou, ainda, conhece uma evolução interna, ocorrem pelo menos dois resultados práticos, que são igualmente elementos constitutivos do método. Em primeiro lugar, quando uma variável muda o seu movimento, isso remete imediatamente ao todo, modificando-o, fazendo-o outro, ainda que, sempre e sempre, ele constitua uma totalidade. Sai-se de uma totalidade para chegar a outra, que, também, se modificará. É por isso que a partir desse impacto "individual" ou de urna série de impactos "individuais", o todo termina por agir sobre o conjunto dos elementos formados, modificando-os, Isso nos permite dizer que na verdade não há relação direta entre elementos dentro do sistema, exceto sob um ponto de vista puramente mecânico ou material. O valor real, isto é, o significado dessa relação é somente dado pelo todo. As relações entre as partes são mediadas pelo todo, como também as relações entre os elementos do espaço.
Desse modo, a noção de causa e efeito que permite uma simplificação das relações entre elementos é insuficiente para compreender e valorizar o movimento real. Assim, pode-se dizer que cada variável dispõe de duas modalidades de "valor": um que vem das suas características próprias, caracteres técnicos e técnico-funcionais e outro que é dado pelos característicos sistêmicos, isto é, pelo fato de que cada elemento ou variável pode ser encarado sob o ponto de vista sistêmico. Esses característicos são, em geral, comandados pelo modo de produção e em particular pelas condições próprias à atividade correspondente ao lugar. Ambas as condições são definidas para cada formação econômico-social, segundo os seus lugares geográficos e os seus momentos históricos. 

10 - Elementos e estruturas
Buscamos até agora uma definição do espaço como sendo um sistema. Todavia, esse modelo de espaço como sistema vem sendo rudemente criticado pelo fato de que a definição tradicional de sistema se tomou inadequada.
Na verdade, se os elementos do espaço são também sistemas (tanto quanto o espaço) eles são também verdadeiras estruturas. Nesse caso, o espaço é um sistema complexo, um sistema de estruturas, submetido, em sua evolução, à evolução das suas próprias estruturas.
Talvez não seja demais insistir no fato de que cada estrutura evolui quando o espaço total evolui e que a evolução de cada estrutura em particular afeta a da totalidade. Uma estrutura, segundo François Perroux se define por uma "rede de relações, uma série de proporções entre fluxos e estoques de unidades elementares e de combinações objetivamente significativas dessas unidades" (1969, pág. 371). Isso põe em evidência a noção de desigualdade de volume ou de desigualdade de força funcional de cada elemento. Em outras palavras, uma diferença na capacidade de criar estoques e de criar fluxos. Tais desigualdades no interior da estrutura, sem mesmo obrigatoriamente supor as noções de hierarquia e de dominação, criam condições dialéticas como um princípio de mudança. O espaço está em evolução permanente. Tal evolução resulta da ação de fatores externos e de fatores internos. Uma nova estrada, a chegada de novos capitais ou a imposição de novas regras (preço, moeda, impostos, etc.) levam a mudanças espaciais, do mesmo modo que a evolução "normal" das próprias estruturas, isto é, sua evolução interna conduz igualmente a uma evolução. Num caso como no outro o movimento de mudança se deve a modificações nos modos de produção concretos. As estruturas do espaço são formadas de elementos homólogos e de elementos não homólogos. Entre as primeiras estão as estruturas demográficas, econômicas, financeiras, isto é, estruturas da mesma classe e que, de um ponto de vista analítico, podem-se considerar como estruturas simples. As estruturas não homólogas, isto é, formadas de diferentes classes, interagem para formar estruturas complexas. A estrutura espacial é algo assim, uma combinação localizada de uma estrutura demográfica específica, de uma estrutura de produção específica, de uma estrutura de renda específica, de uma estrutura de consumo específica, de uma estrutura de classes específica e de um arranjo específico de técnicas produtivas e organizativas por aquelas estruturas e que definem as relações entre os recursos presentes. A realidade social, tanto quanto ao espaço, resultam da interação entre todas essas estruturas. Pode-se dizer também que as estruturas de elementos homólogos mantêm entre elas laços hierárquicos enquanto as estruturas de elementos heterogêneos mantêm laços relacionais. A totalidade social é formada da união desses dados contraditórios, da mesma maneira que o espaço total. As estruturas e os sistemas espaciais, da mesma forma que as demais estruturas e sistemas, evoluem segundo três princípios: 1 - O princípio da ação externa, responsável pela evolução exógena do sistema; 2 - O intercâmbio entre subsistemas (ou subestruturas) que permite falar de uma evolução interna do todo, uma evolução endógena, e; 3 - Uma evolução particular a cada parte ou elemento do sistema tomados isoladamente, evolução que é igualmente interna e endógena. Haveria, assim, um tipo de evolução por ação externa e dois outros por ação interna ao sistema, sendo que o último deles dever-se-ia ao movimento íntimo, próprio de cada parte do sistema. Todavia, não se deve perder de vista o fato de que a ação externa somente se exerce através dos dados internos. Nesse caso, ao mudarem as características próprias a cada elemento, o seu intercâmbio ou a sua forma de recepção ou reação a esforços externos já não é mais a mesma. A ação externa ou endógena é apenas um detonador, um vetor que traz para dentro do sistema um novo impulso, mas que por si só não tem as condições para valorizar esse impulso. O mesmo impulso externo tem uma repercussão diferente segundo o sistema em que se encaixou. Por exemplo, uma certa quantidade de crédito atribuído a uma atividade econômica em todo um país não vai ter as mesmas repercussões em todos os lugares; o aumento ou a diminuição do preço unitário de um bem também não repercute da mesma maneira em toda parte. O mesmo se pode dizer da abertura de uma estrada ou de sua promoção. As diferenças de resultado aqui sugeridas são dadas pelas condições locais próprias, que agem como um modificador do impacto externo. Nesse sentido podemos repetir a opinião de Godelier (1967, pag. 254-255) para quem "todo sistema e toda estrutura devem descrever-se como realidades "mistas" e contraditórias de objetos e de relações que não podem existir separadamente, isto é, de tal modo que sua contradição não exclua a sua unidade". Essa forma de ver o sistema ou a estrutura espacial a partir da qual os elementos são considerados como estruturas, leva também a admitir que cada lugar não é mais do que uma fração do espaço total. Vimos, poucas linhas acima, que o vetor externo só ganha um valor específico como conseqüência das condições do seu impacto, mas também sabemos que o chamado movimento interno das estruturas ou as relações entre elas não são independentes de leis mais gerais. É por essa razão que cada lugar constitui na verdade uma fração do espaço total, pois só esse espaço total é objeto da totalidade das relações exercidas dentro de uma sociedade, em um dado momento. Cada lugar é objeto de apenas algumas dessas relações "atuais" de uma dada sociedade e, através dos seus movimentos próprios, apenas participa de uma fração do movimento social total.
O movimento que estamos tentando explicitar nos leva a admitir que o espaço total, que escapa à nossa apreensão empírica e vem ao nosso espírito sobretudo como conceito, é que constitui o real, enquanto as frações do espaço que nos aparecem tanto mais concretas quanto menores, é que constituem o abstrato na medida em que seu valor sistêmico não está na coisa tal como a vemos, mas no seu valor relativo dentro de um sistema mais amplo. Quando nos referimos, por exemplo, àquela casa ou àquele edifício, àquele loteamento, àquele bairro, são todos dados concretos, - concretos por sua existência mas, na verdade, todos são abstrações, se não buscarmos compreender o seu valor atual em função das condições atuais da sociedade. Casa, edifício, loteamento, bairro, estão sempre mudando de valor relativo dentro da área onde se situam, mudança que não é homogênea para todos e cuja explicação se encontra fora de cada um desses objetos e só pode ser encontrada na totalidade de relações que comandam uma área bem mais vasta. Assim também é com os homens, as firmas, as instituições. A noção de estrutura aplicada ao estudo do espaço tem essa outra vantagem através da noção de sistema, analisamos os elementos, seus predicados e as relações entre tais elementos e tais predicados. Quando a preocupação é com as estruturas, sabemos que se essa noção de predicado é aliada a cada elemento (aqui subestrutura) sabemos antes que sua real definição depende sempre de uma estrutura mais ampla, na qual aquela se insere. 

11 - Uma observação final necessária: as questões práticas
Um esquema de método, por mais logicamente bem construído que seja, encontrará dificuldades em sua, realização. Um esquema de método pretende ser, também, uma hipótese de trabalho, aplicável: 1 - por uma equipe de pesquisadores; 2 - a uma realidade concreta; 3 - realidade que é reconhecível, a um dado momento, através de um certo número de fenômenos e dados que os representam. Cada um desse dados constitui uma limitação prática: a complexidade ou dinamismo da realidade a se analisar; o número e a representatividade dos dados disponíveis; a constituição da equipe de trabalho e sua formação anterior, profissional e teórica, sua disponibilidade na aceitação do tema e do esquema propostos. Tudo isso, além de outros fatores reconhecidos universalmente por quem já se envolveu ativamente em pesquisa. Quanto à formação da equipe de trabalho e à correspondente distribuição das tarefas, a divisão de trabalho assume uma feição crítica, na medida em que somente será válida - permitindo alcançar plenamente os objetivos buscados - caso o todo, assim dividido para efeitos práticos da análise, seja, depois, reconstituível, de modo a permitir uma definição aceitável da realidade e o reconhecimento dos seus processos fundamentais. É evidente que o resultado depende, igualmente, da prévia compenetração do grupo de trabalho, tarefa ativa cujo requerimento de base é a compreensão dos objetos de estudo e dos objetivos deste. É a partir dessa premissa que as tarefas individuais podem ser entendidas. Se o caminho escolhido for o contrário, a síntese não se fará jamais, seja qual for o tempo dedicado à pesquisa de dados e ao reconhecimento de fatos. Tal compenetração deve partir, também, da idéia de que o objeto de análise é o Presente, toda análise histórica sendo apenas o indispensável suporte à compreensão de sua produção. Nesse caso, é importante levar em conta que não se trata de efetuar uma prospecção arqueo16gica que seja, em si mesma, uma finalidade. Trata-se de um meio. Isso hão nos desobriga de buscar uma compreensão global e em profundidade, mas o tema de referência não é uma volta ao passado como dado autônomo na pesquisa, mas como maneira de entender e definir o Presente em vias de se fazer (o Presente já completado pertence ao domínio do Passado), permitindo surpreender o Processo e, por seu intermédio, ensejando a apreensão das tendências, que podem permitir vislumbrar o futuro possível e as suas linhas de força.

31 de out. de 2013

O direito à cidade nas manifestações urbanas: entrevista inédita com David Harvey

O geógrafo britânico David Harvey é um dos pensadores mais influentes da atualidade. Unindo geografa urbana, marxismo e filosofia social na compreensão das contradições do mundo contemporâneo, sua obra é um forte eixo de renovação da tradição crítica e ganha especial relevância num contexto de explosão de movimentos contestatórios urbanos no Brasil e no mundo.
Nesta entrevista, traduzida em primeira mão pelo Blog da Boitempo, Harvey discute as manifestações que tomaram as ruas do Brasil a partir de junho e os desafios para a organização de mobilizações urbanas de amplo escopo, assim como o lugar das novas tecnologias e dos movimentos sociais. À luz do urbanismo privatizado e securitário de Londres, o geógrafo comenta a importância do debate sobre o direito à cidade e os desafios de se pensar uma cidade anti-capitalista. Traçando paralelos com revoltas urbanas ao redor do globo, da China a Istambul, ele esboça, inclusive, acréscimos a sua obra mais recente, que dá nome e inspira o livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, que a Boitempo acaba de lançar analisando as causas e consequências das ditas “Jornadas de Junho”, e com o qual Harvey contribui como autor.
*
Em 1968, Henri Lefebvre introduzia o conceito do “direito à cidade”. Ele advogava o “resgate do homem como o principal protagonista da cidade que construiu (…) o ponto de encontro para a vida coletiva.” O senhor tem se referido a esse direito coletivo – de refazermos a nós mesmos e a nossas cidades – como “um dos mais preciosos, porém mais negligenciados de nossos direitos humanos.” De que formas o senhor pensa que temos negligenciado esse direito humano nos últimos anos?
Se a questão de que tipo de cidade é construída depende criticamente do tipo de pessoa que queremos ser, então a ampla falência em se discutir abertamente essa relação significa que abandonamos o remodelamento das pessoas e de suas paixões aos requisitos da acumulação do capital. Acredito que estava bem claro a seus planejadores e legisladores que a suburbanização dos Estados Unidos após 1945 não apenas ajudaria resgatar os EUA do prospecto de um retorno às condições de depressão dos anos 1930 por meio de uma ampla expansão da demanda efetiva, mas que serviria para criar um mundo social e político desprovido de consciência revolucionária ou de sentimento anticapitalista. Não é de se espantar que o movimento feminista da década de 1960 via o subúrbio como seu inimigo e que o estilo de vida suburbano tornou-se associado a um determinado tipo de subjetividade política socialmente preconceituosa, excludente e, em último caso, racista.
Londres é elogiada como uma cidade multicultural, e talvez um componente significativo do direito à cidade seja o direito de coexistir. Ao reimaginar e refazer cidades, como podemos garantir que esse processo não se dê de forma a privilegiar ou discriminar diferentes interesses ou comunidades que nela existem?
Não há nada que garanta isso além de movimentos sociais, engajamento político ativo e a disposição de lutar por seu lugar. Conflito na e pela cidade é saudável, e não uma patologia que intervenções estatais devam controlar e suprimir.
Vivemos em uma era digital. Em muitos casos, há quem desenvolva relações mais íntimas com pessoas a milhares de quilômetros de distância do que com seus próprios vizinhos de rua. Se é justo dizer que as cidades têm tendido, historicamente, a se desenvolver em torno de um espaço físico compartilhado, de que forma as tecnologias comunicativas que minam a preeminência de comunidades físicas/espaciais afetam a futura configuração da cidade?
As novas tecnologias são uma faca de dois gumes. Por um lado, funcionam como “armas de destruição em massa” levando as pessoas a acreditarem que a política só seria possível em algum mundo virtual. Por outro, podem ser usadas para inspirar e coordenar ação política nas ruas, nos bairros e por toda a cidade. Nada substitui corpos na rua mobilizados para ação política como vimos no Cairo, em Istambul, Atenas, São Paulo etc. Quando trabalham junto com política de rua ativa, as novas tecnologias podem ser um recurso fabuloso.
Em “Whose Rebel City?”[Cidade rebelde de quem?], Neil Grey sugere que em seu livro mais recente, Rebel Cities, a análise do senhor negligenciava a tradição [marxista] autonomista que surgiu durante as lutas urbanas das décadas de 1960 e 1970 na Itália – caracterizadas pelo slogan “Tomar a cidade”; por debates feministas em torno da reprodução social; pela ideia da “fábrica social” e o dito “ativismo comunitário territorial” –, focando sua teoria na absorção do capital e do trabalho excedente via urbanização. Como o senhor responde a essa crítica? Concorda que essas práticas políticas podem servir de modelos delineadores de como habitantes poderiam reorganizar suas cidades?
Acho essa crítica estranha. De fato, o capítulo 2 de Rebel cities trata da criação da urbanização por meio de processos de acumulação de capital, mas o capítulo 5 se dedica a movimentos sociais de classe nas cidades. Não pude cobrir todos esses movimentos, é claro, e então existem tantos, como os associados ao movimento autonomista na Itália que são, certamente, dignos de inclusão. Mas cheguei a me debruçar sobre a forma pela qual as casas das pessoas no começo do século na Itália complementavam os movimentos de conselho fabril e, é claro, se inspiraram muito no caso de El Alto assim como na Comuna de Paris e em outras insurgências urbanas, na tentativa de teorizar de que formas poderiam ser compreendidos no quadro da luta de classes. Então dizer que eu só me preocupei com a absorção do capital excedente é um tanto esquisito e sugere que Neil Grey ou não chegou ao final do livro ou foi desdenhoso porque não tratei de seu movimento social urbano favorito em particular.
Gostaria, no entanto, de ter citado o comentário de Gramsci sobre a importância de suplementar os conselhos fabris com comitês de bairro:
“No comitê de bairro, deveria tentar-se incorporar delegados também de outras categorias de trabalhadores que habitam o bairro: garçons, motoristas, condutores de bonde, ferroviários, lixeiros, empregados domésticos, comerciários etc. O comitê de bairro deveria ser a emanação de toda a classe trabalhadora que habita o bairro, emanação legítima e influente, capaz de fazer respeitar uma disciplina, investida de poder, espontaneamente delegado, bem como capaz de ordenar o fechamento imediato e integral de cada trabalho em todo o bairro.”(“Democrazia operaia“, L’Ordine Nuovo, 21 de junho, 1919; versão em português)
Na esteira da rápida urbanização e pleno inflacionamento da bolha de propriedade na China, o senhor falou de uma crescente luta de classes de base da qual quem mora no Ocidente simplesmente não ouve falar. Se olhássemos com mais cuidado à situação na China, o que poderíamos aprender?
Há muito mais saindo sobre a China agora e há um crescente reconhecimento dos perigos, tanto das gigantescas bolhas de ativos urbanos (particularmente na habitação), quanto de um problema crônico de superprodução de urbanização em resposta à queda de mercados de exportação em 2008. Existe agora muito nervosismo no que diz respeito à superacumulação urbana. Teoricamente, compreendo o que está acontecendo, mas não sei dizer quando o processo será interrompido. E sabemos que existe muita inquietação urbana e industrial na China, mas é muito difícil julgar o quanto e com que significância.
O senhor coloca seu conceito de “acumulação por desapossamento” no coração da urbanização sob regime capitalista. Atualmente, trechos significativos de Londres estão sendo transformados sob o pretexto de “regeneração”, processo que vem acompanhado de cortes nos benefícios habitacionais, e o novo bedroom tax*. Um exemplo entre muitos seria o das centenas de moradores do conjunto habitacional de Heygate, no centro da cidade, que perderam suas casas para que incorporadores imobiliários pudessem substituir habitação social por propriedades “a preços acessíveis”. Movimentos locais emergiram em resistência a esses despejos, mas enfrentam continuamente constrangimentos políticos e legais. Quais são seus pensamentos sobre a importância e as potenciais armadilhas de um movimento unificado em toda cidade – ou de escopo ainda maior?
Acho que é vital unificar, o quanto for possível, as lutas contra o desapossamento na cidade toda. Mas fazer isso requer uma imagem precisa das formas de desapossamento e de suas raízes. Por exemplo, existe atualmente uma necessidade de montar um quadro das práticas predatórias dos incorporadores imobiliários e de seus financiadores em nível metropolitano, e começar uma luta coletiva e de toda a cidade para refrear e controlar suas práticas. Recentemente vimos uma grande inquietação urbana no Brasil tratando principalmente de custos com o transporte, mas também (e isso é notável, dado que se trata do Brasil) contra a construção de estádios para a Copa do Mundo e o deslocamento e gasto de recursos públicos envolvidos. Então, lutas em nível metropolitano e trans-metropolitano não são impossíveis. O perigo, como sempre, é que as lutas possam esmaecer na medida em que as pessoas se cansam da luta. A única resposta é manter as lutas acontecendo e construir organizações que têm a capacidade de fazer isso (o MST no Brasil é um bom exemplo disso, apesar de não ser uma luta distintamente urbana).
Existe uma distinta carência de espaços de propriedade comum em Londres. Boa parte da cidade é privatizada e atende ao panóptico securitário da vigilância, e há uma escassez de espaços públicos livres de interferências do mercado. É importante buscar e construir espaços comunitários para permitir àqueles que resistem às depredações do capitalismo terem espaço não somente para trabalho, mas para explorar novas vias de interação criativa também?
A questão de liberar espaços controlados pelo Estado para fazer deles um bem comum controlado pelas pessoas é, na minha opinião, crucial. A reversão da privatização dos espaços públicos é também vital e eu esperaria ver muito mais movimentos dirigidos a esses fins.
O senhor tem falado sobre a possibilidade de uma “liga de cidades socialistas” como uma maneira poderosa de mudar a ordem do mundo. Será que poderia discorrer um pouco sobre o que quer dizer, e como elas poderiam funcionar?
É uma ideia um tanto distante à primeira vista mas existe muita aferição ocorrendo entre cidades, e em determinadas questões, como o controle de armas nos EUA, existem ligações cooperativas entre administrações urbanas que podem ter resultados progressivos. Não vejo por que tais práticas não possam ser desenvolvidas em resistências urbanas organizadas contra práticas neoliberais. Penso que uma resposta coordenada atravessando o escopo da administração urbana no Reino Unido para a chamada bedroom tax seria uma possibilidade que ecoaria a maneira pela qual a luta sobre a poll tax* se desenrolou anteriormente. Temos de fato feito coisas desse tipo, mas deixamos de analisá-las completamente e de apreciarmos suas possibilidades posteriormente.
A inquietação civil está se tornando uma característica recorrente da vida urbana em Londres, assim como em outras cidades ao redor do mundo, dentre elas Atenas, Madri, Cidade do México, Buenos Aires, Santiago, Bogotá, Rio de Janeiro e, mais recentemente, Estocolmo. Os motins (não apenas protestos e movimentos sociais organizados) estariam se tornarndo parte da caixa de ferramentas para reivindicar o direito à cidade? O que aqueles aqui [em Londres], na capital financeira do mundo, podem aprender dessas lutas em outras cidades?
Já que me convida a comentar essas questões, temos Istambul. Quando você olha para a situação global, sente que há uma situação vulcânica borbulhando debaixo da superfície da sociedade, e nunca sabe quando e onde ele explodirá em seguida (quem diria Istambul, apesar de estar claro para mim em minha visita anterior que havia lá muito descontentamento). Penso que temos de nos preparar para tais erupções e construir, tanto quanto seja possível, infraestruturas e formas organizacionais capazes de apoiar e desenvolvê-las em movimentos sustentáveis.
Mesmo reconhecendo a inerente legitimação da propriedade privada no interior do conceito, quais são suas visões sobre a eficácia da implementação de uma taxa sobre o valor da terra** no Reino Unido? Você acha que ela poderia atingir algum dos efeitos equalizadores advogados por seus proponentes?
Acredito que uma taxa sobre o valor da terra poderia ajudar, mas, em último caso, não endereça o problema das vastas extrações de riqueza por uma classe de rentistas que se tornou tão poderosa nos anos recentes, particularmente em grandes cidades como Londres e Nova Iorque, pois isto é uma das principais formas de espoliação que precisa ser confrontada.
*
Bedroom tax é o apelido dado a uma das mais discutidas mudanças nas políticas públicas habitacionais impostas pelo pacote de reformas no bem-estar redigido no final de 2012, sob o Welfare Reform Act. Traduzido literalmente como “taxa do quarto”, trata-se de uma “penalidade de sub-ocupação” que reduz os benefícios dos beneficiários que possuiriam espaço demais. Em vigor desde abril de 2013, a medida é frequentemente comparada ao poll tax, ou imposto comunitário, imposto por Margaret Thatcher no final de seu governo. A medida, que substituía o imposto sobre o valor dos imóveis por uma taxa única a ser cobrada por habitante (“por cabeça”), foi fortemente resistida pela população e é um dos principais fatores atribuídos à queda da Primeira-Ministra neoliberal. [Nota do Editor]
** No Brasil, em especial em São Paulo, há um debate semelhante em torno da aplicabilidade dos instrumentos que visam a promoção da função social da propriedade, previstos pelo Estatuto da Cidade. O recente manifesto Urbanistas pela justiça social destaca o IPTU progressivo no tempo, o PEUC, o direito de preempção, e a desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública. [N.E.]
Publicado em inglês no The Occupied Times of London, de agosto de 2013.
A tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo