31 de out. de 2013

O direito à cidade nas manifestações urbanas: entrevista inédita com David Harvey

O geógrafo britânico David Harvey é um dos pensadores mais influentes da atualidade. Unindo geografa urbana, marxismo e filosofia social na compreensão das contradições do mundo contemporâneo, sua obra é um forte eixo de renovação da tradição crítica e ganha especial relevância num contexto de explosão de movimentos contestatórios urbanos no Brasil e no mundo.
Nesta entrevista, traduzida em primeira mão pelo Blog da Boitempo, Harvey discute as manifestações que tomaram as ruas do Brasil a partir de junho e os desafios para a organização de mobilizações urbanas de amplo escopo, assim como o lugar das novas tecnologias e dos movimentos sociais. À luz do urbanismo privatizado e securitário de Londres, o geógrafo comenta a importância do debate sobre o direito à cidade e os desafios de se pensar uma cidade anti-capitalista. Traçando paralelos com revoltas urbanas ao redor do globo, da China a Istambul, ele esboça, inclusive, acréscimos a sua obra mais recente, que dá nome e inspira o livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, que a Boitempo acaba de lançar analisando as causas e consequências das ditas “Jornadas de Junho”, e com o qual Harvey contribui como autor.
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Em 1968, Henri Lefebvre introduzia o conceito do “direito à cidade”. Ele advogava o “resgate do homem como o principal protagonista da cidade que construiu (…) o ponto de encontro para a vida coletiva.” O senhor tem se referido a esse direito coletivo – de refazermos a nós mesmos e a nossas cidades – como “um dos mais preciosos, porém mais negligenciados de nossos direitos humanos.” De que formas o senhor pensa que temos negligenciado esse direito humano nos últimos anos?
Se a questão de que tipo de cidade é construída depende criticamente do tipo de pessoa que queremos ser, então a ampla falência em se discutir abertamente essa relação significa que abandonamos o remodelamento das pessoas e de suas paixões aos requisitos da acumulação do capital. Acredito que estava bem claro a seus planejadores e legisladores que a suburbanização dos Estados Unidos após 1945 não apenas ajudaria resgatar os EUA do prospecto de um retorno às condições de depressão dos anos 1930 por meio de uma ampla expansão da demanda efetiva, mas que serviria para criar um mundo social e político desprovido de consciência revolucionária ou de sentimento anticapitalista. Não é de se espantar que o movimento feminista da década de 1960 via o subúrbio como seu inimigo e que o estilo de vida suburbano tornou-se associado a um determinado tipo de subjetividade política socialmente preconceituosa, excludente e, em último caso, racista.
Londres é elogiada como uma cidade multicultural, e talvez um componente significativo do direito à cidade seja o direito de coexistir. Ao reimaginar e refazer cidades, como podemos garantir que esse processo não se dê de forma a privilegiar ou discriminar diferentes interesses ou comunidades que nela existem?
Não há nada que garanta isso além de movimentos sociais, engajamento político ativo e a disposição de lutar por seu lugar. Conflito na e pela cidade é saudável, e não uma patologia que intervenções estatais devam controlar e suprimir.
Vivemos em uma era digital. Em muitos casos, há quem desenvolva relações mais íntimas com pessoas a milhares de quilômetros de distância do que com seus próprios vizinhos de rua. Se é justo dizer que as cidades têm tendido, historicamente, a se desenvolver em torno de um espaço físico compartilhado, de que forma as tecnologias comunicativas que minam a preeminência de comunidades físicas/espaciais afetam a futura configuração da cidade?
As novas tecnologias são uma faca de dois gumes. Por um lado, funcionam como “armas de destruição em massa” levando as pessoas a acreditarem que a política só seria possível em algum mundo virtual. Por outro, podem ser usadas para inspirar e coordenar ação política nas ruas, nos bairros e por toda a cidade. Nada substitui corpos na rua mobilizados para ação política como vimos no Cairo, em Istambul, Atenas, São Paulo etc. Quando trabalham junto com política de rua ativa, as novas tecnologias podem ser um recurso fabuloso.
Em “Whose Rebel City?”[Cidade rebelde de quem?], Neil Grey sugere que em seu livro mais recente, Rebel Cities, a análise do senhor negligenciava a tradição [marxista] autonomista que surgiu durante as lutas urbanas das décadas de 1960 e 1970 na Itália – caracterizadas pelo slogan “Tomar a cidade”; por debates feministas em torno da reprodução social; pela ideia da “fábrica social” e o dito “ativismo comunitário territorial” –, focando sua teoria na absorção do capital e do trabalho excedente via urbanização. Como o senhor responde a essa crítica? Concorda que essas práticas políticas podem servir de modelos delineadores de como habitantes poderiam reorganizar suas cidades?
Acho essa crítica estranha. De fato, o capítulo 2 de Rebel cities trata da criação da urbanização por meio de processos de acumulação de capital, mas o capítulo 5 se dedica a movimentos sociais de classe nas cidades. Não pude cobrir todos esses movimentos, é claro, e então existem tantos, como os associados ao movimento autonomista na Itália que são, certamente, dignos de inclusão. Mas cheguei a me debruçar sobre a forma pela qual as casas das pessoas no começo do século na Itália complementavam os movimentos de conselho fabril e, é claro, se inspiraram muito no caso de El Alto assim como na Comuna de Paris e em outras insurgências urbanas, na tentativa de teorizar de que formas poderiam ser compreendidos no quadro da luta de classes. Então dizer que eu só me preocupei com a absorção do capital excedente é um tanto esquisito e sugere que Neil Grey ou não chegou ao final do livro ou foi desdenhoso porque não tratei de seu movimento social urbano favorito em particular.
Gostaria, no entanto, de ter citado o comentário de Gramsci sobre a importância de suplementar os conselhos fabris com comitês de bairro:
“No comitê de bairro, deveria tentar-se incorporar delegados também de outras categorias de trabalhadores que habitam o bairro: garçons, motoristas, condutores de bonde, ferroviários, lixeiros, empregados domésticos, comerciários etc. O comitê de bairro deveria ser a emanação de toda a classe trabalhadora que habita o bairro, emanação legítima e influente, capaz de fazer respeitar uma disciplina, investida de poder, espontaneamente delegado, bem como capaz de ordenar o fechamento imediato e integral de cada trabalho em todo o bairro.”(“Democrazia operaia“, L’Ordine Nuovo, 21 de junho, 1919; versão em português)
Na esteira da rápida urbanização e pleno inflacionamento da bolha de propriedade na China, o senhor falou de uma crescente luta de classes de base da qual quem mora no Ocidente simplesmente não ouve falar. Se olhássemos com mais cuidado à situação na China, o que poderíamos aprender?
Há muito mais saindo sobre a China agora e há um crescente reconhecimento dos perigos, tanto das gigantescas bolhas de ativos urbanos (particularmente na habitação), quanto de um problema crônico de superprodução de urbanização em resposta à queda de mercados de exportação em 2008. Existe agora muito nervosismo no que diz respeito à superacumulação urbana. Teoricamente, compreendo o que está acontecendo, mas não sei dizer quando o processo será interrompido. E sabemos que existe muita inquietação urbana e industrial na China, mas é muito difícil julgar o quanto e com que significância.
O senhor coloca seu conceito de “acumulação por desapossamento” no coração da urbanização sob regime capitalista. Atualmente, trechos significativos de Londres estão sendo transformados sob o pretexto de “regeneração”, processo que vem acompanhado de cortes nos benefícios habitacionais, e o novo bedroom tax*. Um exemplo entre muitos seria o das centenas de moradores do conjunto habitacional de Heygate, no centro da cidade, que perderam suas casas para que incorporadores imobiliários pudessem substituir habitação social por propriedades “a preços acessíveis”. Movimentos locais emergiram em resistência a esses despejos, mas enfrentam continuamente constrangimentos políticos e legais. Quais são seus pensamentos sobre a importância e as potenciais armadilhas de um movimento unificado em toda cidade – ou de escopo ainda maior?
Acho que é vital unificar, o quanto for possível, as lutas contra o desapossamento na cidade toda. Mas fazer isso requer uma imagem precisa das formas de desapossamento e de suas raízes. Por exemplo, existe atualmente uma necessidade de montar um quadro das práticas predatórias dos incorporadores imobiliários e de seus financiadores em nível metropolitano, e começar uma luta coletiva e de toda a cidade para refrear e controlar suas práticas. Recentemente vimos uma grande inquietação urbana no Brasil tratando principalmente de custos com o transporte, mas também (e isso é notável, dado que se trata do Brasil) contra a construção de estádios para a Copa do Mundo e o deslocamento e gasto de recursos públicos envolvidos. Então, lutas em nível metropolitano e trans-metropolitano não são impossíveis. O perigo, como sempre, é que as lutas possam esmaecer na medida em que as pessoas se cansam da luta. A única resposta é manter as lutas acontecendo e construir organizações que têm a capacidade de fazer isso (o MST no Brasil é um bom exemplo disso, apesar de não ser uma luta distintamente urbana).
Existe uma distinta carência de espaços de propriedade comum em Londres. Boa parte da cidade é privatizada e atende ao panóptico securitário da vigilância, e há uma escassez de espaços públicos livres de interferências do mercado. É importante buscar e construir espaços comunitários para permitir àqueles que resistem às depredações do capitalismo terem espaço não somente para trabalho, mas para explorar novas vias de interação criativa também?
A questão de liberar espaços controlados pelo Estado para fazer deles um bem comum controlado pelas pessoas é, na minha opinião, crucial. A reversão da privatização dos espaços públicos é também vital e eu esperaria ver muito mais movimentos dirigidos a esses fins.
O senhor tem falado sobre a possibilidade de uma “liga de cidades socialistas” como uma maneira poderosa de mudar a ordem do mundo. Será que poderia discorrer um pouco sobre o que quer dizer, e como elas poderiam funcionar?
É uma ideia um tanto distante à primeira vista mas existe muita aferição ocorrendo entre cidades, e em determinadas questões, como o controle de armas nos EUA, existem ligações cooperativas entre administrações urbanas que podem ter resultados progressivos. Não vejo por que tais práticas não possam ser desenvolvidas em resistências urbanas organizadas contra práticas neoliberais. Penso que uma resposta coordenada atravessando o escopo da administração urbana no Reino Unido para a chamada bedroom tax seria uma possibilidade que ecoaria a maneira pela qual a luta sobre a poll tax* se desenrolou anteriormente. Temos de fato feito coisas desse tipo, mas deixamos de analisá-las completamente e de apreciarmos suas possibilidades posteriormente.
A inquietação civil está se tornando uma característica recorrente da vida urbana em Londres, assim como em outras cidades ao redor do mundo, dentre elas Atenas, Madri, Cidade do México, Buenos Aires, Santiago, Bogotá, Rio de Janeiro e, mais recentemente, Estocolmo. Os motins (não apenas protestos e movimentos sociais organizados) estariam se tornarndo parte da caixa de ferramentas para reivindicar o direito à cidade? O que aqueles aqui [em Londres], na capital financeira do mundo, podem aprender dessas lutas em outras cidades?
Já que me convida a comentar essas questões, temos Istambul. Quando você olha para a situação global, sente que há uma situação vulcânica borbulhando debaixo da superfície da sociedade, e nunca sabe quando e onde ele explodirá em seguida (quem diria Istambul, apesar de estar claro para mim em minha visita anterior que havia lá muito descontentamento). Penso que temos de nos preparar para tais erupções e construir, tanto quanto seja possível, infraestruturas e formas organizacionais capazes de apoiar e desenvolvê-las em movimentos sustentáveis.
Mesmo reconhecendo a inerente legitimação da propriedade privada no interior do conceito, quais são suas visões sobre a eficácia da implementação de uma taxa sobre o valor da terra** no Reino Unido? Você acha que ela poderia atingir algum dos efeitos equalizadores advogados por seus proponentes?
Acredito que uma taxa sobre o valor da terra poderia ajudar, mas, em último caso, não endereça o problema das vastas extrações de riqueza por uma classe de rentistas que se tornou tão poderosa nos anos recentes, particularmente em grandes cidades como Londres e Nova Iorque, pois isto é uma das principais formas de espoliação que precisa ser confrontada.
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Bedroom tax é o apelido dado a uma das mais discutidas mudanças nas políticas públicas habitacionais impostas pelo pacote de reformas no bem-estar redigido no final de 2012, sob o Welfare Reform Act. Traduzido literalmente como “taxa do quarto”, trata-se de uma “penalidade de sub-ocupação” que reduz os benefícios dos beneficiários que possuiriam espaço demais. Em vigor desde abril de 2013, a medida é frequentemente comparada ao poll tax, ou imposto comunitário, imposto por Margaret Thatcher no final de seu governo. A medida, que substituía o imposto sobre o valor dos imóveis por uma taxa única a ser cobrada por habitante (“por cabeça”), foi fortemente resistida pela população e é um dos principais fatores atribuídos à queda da Primeira-Ministra neoliberal. [Nota do Editor]
** No Brasil, em especial em São Paulo, há um debate semelhante em torno da aplicabilidade dos instrumentos que visam a promoção da função social da propriedade, previstos pelo Estatuto da Cidade. O recente manifesto Urbanistas pela justiça social destaca o IPTU progressivo no tempo, o PEUC, o direito de preempção, e a desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública. [N.E.]
Publicado em inglês no The Occupied Times of London, de agosto de 2013.
A tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo

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