Fica a dica e sugestão: Espaço e método do professor Milton Santos.
O ESPAÇO E SEUS ELEMENTOS: QUESTÕES DE MÉTODO
por Milton Santos. Do livro: Espaço e Método.
por Milton Santos. Do livro: Espaço e Método.
Introdução
O espaço
deve ser considerado como uma totalidade, a exemplo da própria sociedade
que lhe dá vida. Todavia, considerá-lo assim é uma regra de método cuja
prática exige que se encontre paralelamente através da análise, a
possibilidade de dividi-lo em partes. Ora, a análise é uma forma de
fragmentação do todo que se caracteriza pela possibilidade de permitir,
ao seu término, a reconstituição desse todo. Quanto ao espaço, sua
divisão em partes deve poder ser operada segundo uma variedade de
critérios. A que vamos aqui privilegiar e tentar, através do que
chamamos "os elementos do espaço" é apenas uma dessas diversas
possibilidades.
1 - O que é um elemento do espaço
Antes mesmo de
tentar definir o que é um elemento do espaço, valeria a pena, talvez,
discutir a própria noção de elemento. Segundo os teóricos, os elementos
seriam a "base de toda dedução"; "princípios óbvios, luminosamente
óbvios, admitidas por todos os homens"' (Bertrand Russel). Essa
definição equivale o elemento a uma categoria, a expressão categoria
sendo tomada no sentido de verdade eterna, presente em todos os tempos,
em todos os lugares, e da qual se parte para a compreensão das coisas
num dado momento, desde que se tenha o cuidado de levar em conta as
mudanças histéricas. No caso dos elementos, essa posição, segundo
Russel, teria sido aceita através da Idade Wdia e, mesmo, depois, como
no caso de Descartes. Leibniz, considera que a sua propriedade essencial
é força e não extensão. Os elementos disporiam, então, de inércia, pela
qual eles podem permanecer nos seus próprios lugares, enquanto, ao
mesmo tempo, existem forças que buscam deslocá-los ou penetrar neles.
Desse modo, sendo espaciais (pela fato de disporem de extensão) eles
também são dotados de uma estrutura interna pela qual participam da vida
do todo de que são parte e que lhes atribui um comportamento diferente
(para cada qual), como reação ao próprio jogo das forças que os atingem.
A definição do elemento iria, pois, além da sugestão de Harvey (1 969)
sendo algo mais que "a unidade básica de um sistema em termos primitivos
que, de um ponto de vista matemático, não necessita definição", da
mesma forma que a concepção do ponto na Geometria.
2 - Os Elementos do Espaço: Enumeração e Funções
Os elementos do
espaço seriam os seguintes: os homens, as firmas, as instituições, o
chamado meio ecológico e as infra-estruturas. Os homens são elementos do
espaço na qualidade de fornecedores de trabalho ou de candidatos a
isso, seja na qualidade de jovens, seja como desempregados. A verdade é
que tanto os jovens, quanto os ocasionalmente sem emprego ou os já
aposentados, não participam diretamente da produção, mas o simples fato
de estarem presentes no lugar tem como conseqüência a demanda de um
certo tipo de trabalho para outros. Esses diversos tipos de trabalho e
de demanda são a base de uma classificação do elemento homem na
caracterização de um dado espaço. A demanda de cada indivíduo como
membro da sociedade total é respondida em parte pelas firmas e em parte
pelas instituições. A firmas têm como função essencial a produção de
bens, serviços e idéias. As instituições por seu turno produzem normas,
ordens e legitimações. O meio ecológico é o conjunto de complexos
territoriais que constituem a base física do trabalho humano. As
infra-estruturas são o trabalho materializado e geografizado na forma de
casas, plantações, caminhos, etc.
3 - Os elementos do espaço, sua redutibilidade
A simples
enumeração das funções que cabem a cada um dos elementos do espaço
mostra que eles são, de certa forma, intercambiáveis e redutíveis uns
aos outros. Essa intercambialidade e redutibilidade aumenta, na verdade,
com o desenvolvimento histórico, é um resultado da complexidade
crescente em todos os níveis da vida. Desse modo, os homens também podem
ser tomados como firmas (o vendedor da força de trabalho) ou como
instituições (no caso do cidadão, por exemplo), da mesma maneira que as
instituições aparecem como firmas e estas como instituições. Este último
é o caso das transnacionais ou das grandes corporações que não apenas
se impõem regras internas de funcionamento, como intervêm na criação de
normas sociais a um nível de amplitude maior que o da sua ação direta e
até se tornam concorrentes das instituições e, mesmo, do Estado. A
fixação do preço das mercadorias pelos monopólios dá-lhes uma atribuição
que é própria às entidades de direito público, na medida em que
interferem na economia de cada cidadão e de cada família, e mesmo de
outras firmas, competindo com o Estado na arrecadação da poupança. É
certo, porém, que, no momento atual, as funções das firmas e das
instituições de alguma forma se entrelaçam e confundem, na medida em que
as firmas também produzem direta ou indiretamente normas, e as
instituições são, como o Estado, produtores de bens e de serviços. Ao
mesmo tempo que os elementos do espaço se tornam mais intercambiáveis,
as relações entre eles se tornam também mais íntimas e muito mais
extensas. Dessa maneira, a noção de espaço como uma totalidade impõe de
maneira mais evidente, porque mais presente; e pelo fato de resultar
mais intrincada, torna-se mais exigente de análise.
4. Os elementos do espaço, as interações
O estudo das
interações entre os diversos elementos do espaço é um dado fundamental
da análise. Na medida em que função é ação, a interação supõe
interdependência funcional entre os elementos. Através do estudo das
interações, recuperamos a totalidade social, isto é, o espaço como um
todo, e, igualmente, a sociedade como um todo. Pois cada ação não
constitui um dado independente, mas um resultado do próprio processo
social. Falando do que antigamente se chamava região urbana, o geógrafo
Haggett disse que em Geografia Humana a região nodal sugere um conjunto
de objetos (cidades, aldeias, fazendas, etc.) relacionados através de
movimentos circulatórios (dinheiro, mercadorias, migrantes, etc.) e a
energia que lhes vem através das necessidades biológicas e sociais da
comunidade. Ora, essas necessidades são todas satisfeitas através do ato
de produzir. É dessa forma que se definem as formas de produzir e
paralelamente as de consumir, as normas respectivas à divisão da
sociedade em classes e a rede de relações que a preside. É também assim
que se definem os investimentos a serem feitos. Tais investimentos, cuja
tendência é dar-se, cada vez mais, em forma de capital fixo, modificam o
meio ecológico através de sistemas de engenharia que se superpondo uns
aos outros, total ou parcialmente, vão modificando o próprio meio
ecológico, adaptado às condições emergentes da produção. Dessa forma, se
opera uma evolução concomitante do homem e o que se poderia chamar de
"natureza," através da intermediação das instituições e das firmas.
Caberia, aliás, aqui, perguntar se é válida a distinção que de início
fizemos entre o meio ecológico e as infra-estruturas como elementos do
espaço. Na medida em que as infra-estruturas se somam e colam ao meio
ecológico e se tornam na verdade uma parte inseparável dele, não seria
uma violência considerá-los como elementos distintos? Ademais, a cada
momento da evolução da sociedade o homem encontra um meio de trabalho já
constituído sobre o qual ele opera e a distinção entre o que se
chamaria de natural e não natural se torna artificial, como Ruy Moreira
(1980) recentemente indicou. A expressão meio ecológico não tem a mesma
significação dada à natureza selvagem ou natureza cósmica, como às vezes
se tende a admitir. O meio ecológico já é meio modificado e cada vez
mais é meio técnico. Dessa forma, o que em realidade se dá é um
acréscimo ao meio de novas obras dos homens, a criação de um novo meio a
partir daquele que já existia: o que se costuma chamar de "natureza
primeira" para contrapor à "natureza segunda" já é natureza Segunda. A
natureza primeira, como sinônimo de natureza natural, só existiu até o
momento imediatamente anterior àquele em que o homem se transformou em
homem social, através da produção social. A partir desse momento, tudo o
que consideramos como natureza primeira já foi transformado. Esse
processo de transformação, contínuo e progressivo, constitui uma mudança
qualitativa fundamental nos dias atuais. E na medida em que o trabalho
humano tem como base a ciência e a técnica, tornou-se por isso mesmo a
historicização da tecnologia.
5 - Do conceito à realidade empírica
Quando dizemos que
os elementos do espaço são os homens, as firmas, as instituições, o
suporte ecológico, as infra-estruturas, estamos aqui considerando cada
elemento como um conceito. A expressão conceito é geralmente traduzida
como significando uma abstração, extraída da observação de fatos
particulares. Mas, como cada fato particular ou cada coisa particular só
tem significado a partir do conjunto em que estão incluídos, essa coisa
ou esse fato é que termina sendo abstrato, enquanto o real passa a ser o
conceito. Mas o conceito só é real na medida em que é atual. Isso quer
dizer que as expressões homem, firma, instituição, suporte ecológico,
infra-estrutura, somente podem ser entendidos à luz de sua História e do
presente. Ao longo da História, toda e qualquer variável se acha em
evolução constante. Por exemplo, a variável demográfica está sujeita a
evoluções e mesmo revoluções. Se considerarmos a realidade demográfica
sob o aspecto do crescimento natural ou sob o das migrações, a cada
momento da História suas condições respectivas variam. Assim, no curso
da História humana, contam-se diversas revoluções demográficas, cada
qual com um significado diferente. Da mesma maneira, os tipos e formas
de migrações variam, assim como os respectivos significados. Se tomamos
um outro exemplo, como o da energia, a cada fase a sua utilização toma
aspectos diversos desde o uso, unicamente, da energia humana, ao da
energia animal, ala que se descobriram formas de domar as fontes
naturais de energia. Passamos, aqui, de uma fase em que a energia
utilizada é a energia mecânica ou inanimada, como no caso do motor a
explosão, ao uso da energia cinética e mais recentemente da energia
atômica. O mesmo raciocínio se aplica a qualquer que seja a variável. O
que nos interessa é o fato de que a cada momento histórico cada elemento
muda seu papel e a sua posição no sistema temporal e no sistema
espacial e, a cada momento, o valor de cada qual deve ser medido na sua
relação com os demais elementos e com o todo. Desse ponto de vista,
podemos repetir a expressão de Kuhn (1962) quando diz que os elementos
ou variáveis "são estados ou condições de coisas, mas não coisas por
elas próprias". Ele acrescenta: "em sistemas que envolvem pessoas não é a
pessoa que é um elemento, mas os seus estados de fome, de desejo, de
companheirismo, de informação ou um outro traço de qualidade relevante
para o sistema".
6 - Os elementos como variáveis
O que foi enunciado
até agora permite pensar que os elementos do espaço estão submetidos a
variações quantitativas e qualitativas. Desse modo, os elementos do
espaço devem ser considerados como variáveis. Isto significa, como o
nome indica, que eles variam e mudam de valor segundo o movimento da
História. Se esse valor lhe vem das qualidades novas que adquirem, ele
também representa uma quantidade. Mas a expressão real de cada
quantidade é dada como um respirado das necessidades sociais e de sua
gradação em um dado momento. Por isso mesmo, a quantificação
correspondente a cada elemento não pode ser feita de forma apriorística,
isto é, antes de captarmos o seu valor qualitativo. Neste caso, como,
aliás, em qualquer outro, a posteriori. Isso é tanto mais verdadeiro
porque cada elemento do espaço tem um valor diferente, segundo o lugar
em que se encontra. A especificidade do lugar pode ser entendida também
como uma valorização específica (ligada ao lugar) de cada variável. Por
exemplo, duas fábricas montadas ao mesmo tempo por uma mesma firma,
dotadas das mesmas qualidades técnicas, mas localizadas em lugares
diferentes, atribuem aos seus proprietários resultados diferentes. Do
ponto de vista puramente material, esses resultados podem ser os mesmos,
por exemplo, uma certa quantidade produzida. Mas o custo dos fatores de
produção, como a mão-de-obra, ou a água, ou a energia, pode variar,
assim como a possibilidade de distribuir os bens produzidos pode não ser
a mesma, etc. Por outro lado, ainda que as duas firmas, proprietárias
das duas fábricas em questão, disponham do mesmo poder econômico e
político, sua localização diversa constitui um dado que leva à
diferenciação dos resultados. O mesmo se dá, por exemplo, com os
indivíduos. Homens que tiveram a mesma formação e que têm as mesmas
virtualidades mas estão situados em lugares diferentes, não tem a mesm
condição como produtores, como consumidores e até mesmo como cidadãos.
Dessa forma, cada lugar atribui a cada elemento constituinte do espaço
um valor particular. Em um mesmo lugar, cada elemento está sempre
variando de valor, porque, de uma forma ou de outra, cada elemento do
espaço - homens, firmas, instituições, meio - entra em relação com os
demais; e essas relações são em grande parte ditadas pelas condições do
lugar. Sua evolução conjunta num lugar ganha, destarte, características
próprias, ainda que subordinadas ao movimento todo, isto é, do conjunto
dos lugares. Aliás, essa especificidade do lugar, que se acentua com a
evolução própria das variáveis localizadas, é que permite falar de um
espaço concreto. Desse modo, se cada elemento do espaço guarda o mesmo
nome, seu conteúdo e sua significação estão sempre mudando. Cabe, então,
falar de perecibilidade da significação de uma variável, e isso
constitui uma regra de método fundamental. O valor da variável não é
função dela própria mas do seu papel no interior de um conjunto. Quando
este muda de significação, de conteúdo, de regras ou leis, também muda o
valor de cada variável. A questão não é, pois, de levar em conta
causalidades, mas contextos. A causalidade poria em jogo as relações
entre elementos, ainda que essas relações fossem multilaterais. O
contexto leva em conta o movimento todo. Em outras palavras, se nós
estudamos ao mesmo tempo diversas relações bilaterais, como, por
exemplo, entre homens e natureza; ou entre firmas e homens (capital e
trabalho); ou entre firmas e Estado (poder econômico e poder político);
ou entre o Estado e os cidadãos; estaremos fazendo uma análise
multivariável e considerando, ao mesmo tempo, que cada variável tem um
valor por si mesma; isso, porém, de fato, não se dá. Somente através do
movimento do conjunto, isto é, do todo, ou do contexto, é que podemos
corretamente valorizar cada parte e analisá-la, para, em seguida,
reconhecer concretamente esse todo. Essa tarefa supõe um esforço de
classificação.
7 - Um esforço de classificação é necessário
Quando nos
referimos a homens, estamos englobando nessa expressão o que poderia se
chamar de população ou fração de uma população. Sabemos, porém, que uma
população é formada de pessoas que se podem classificar segundo sua
idade, sua raça, seu nível de instrução, seu nível de salário, etc. As
características da população permitem o seu conhecimento mais
sistemático e o mesmo se dá com as firmas, que podem ser individuais ou
coletivas, estas últimas podendo ser sociedades anônimas ou sociedades
limitadas ou ainda cooperativas, corporações nacionais ou firmas
internacionais. E assim por diante. Ora, cada uma dessas parcelas ou
frações de um determinado elemento formadores do espaço exerce uma
função diferente e também mantém relações específicas com outras frações
dos demais elementos. Por exemplo, numa sociedade avançada, as crianças
e os velhos mereceriam a proteção do Estado, enquanto os adultos seriam
chamados a trabalhar como um direito e um dever. Assim, as relações de
cada tipo de homem com o Estado não são as mesmas. As relações de cada
tipo de firma com o Estado também não são idênticas. Da mesma forma, em
cada momento histórico os valores atribuídos a uma profissão ou a uma
faixa de idade, a um nível de instrução, uma raça, não são os mesmos. Se
considerássemos a população como um todo, as firmas como um todo, a
nossa analise não levaria em conta as múltiplas possibilidades de
interação. Ao contrário, quanto mais sistemática for a classificação,
tanto mais claras aparecerão as relações sociais e, em conseqüência, as
chamadas relações espaciais.
8 - O exame das variáveis sob o ângulo das técnicas e da organização: a questão do "lugar.'
Em cada época os
elementos ou variáveis tão portadores (ou são conduzidos) por uma
tecnologia específica e uma certa combinação de componentes do capital e
do trabalho. As técnicas são também variáveis, porque elas mudam
através do tempo. Só aparentemente elas formam a um contínuo. Se,
nominalmente, suas funções são as mesmas, a sua eficiência, todavia, não
é a mesma. Em decorrência das técnicas utilizadas e dos diversos
componentes de capital mobilizados, pode-se falar de uma idade dos
elementos ou de uma idade das variáveis. Desse modo, cada variável teria
uma idade diferente. O seu grau de modernidade só pode ser aferido
dentro do sistema como um todo, seja do sistema local, em certos casos,
seja do sistema nacional, e ainda, para outros, do sistema
internacional. Um primeiro dado a levar em conta é que a evolução
técnica e a do capital não se fazem paralelamente para todas as
variáveis. Também, ela não se faz igualmente nos diversos lugares, cada
lugar sendo uma combinação de variáveis de idades diferentes: cada lugar
é marcado por uma combinação técnica diferente e por uma combinação
diferente dos componentes do capital, o que atribui a cada qual uma
estrutura técnica própria, específica, e uma estrutura de capital
própria, específica, as quais corresponde uma estrutura própria,
específica do trabalho. Como resultado, cada lugar é uma combinação de
diferentes modos de produção particulares ou modos de produção
concretos. Em cada lugar, as variáveis A, B e C... não têm a mesma
posição no aparente contínuo, porque elas são marcadas por qualidades
diversas. Isso resulta do fato de que cada lugar é uma combinação de
técnicas qualitativamente diferentes, individualmente dotadas de um
tempo específico - daí as diferenças entre lugares. Por isso mesmo a
Geografia pode sr considerada uma verdadeira filosofia das técnicas.
Dizer que a partir das técnicas e seu uso o geógrafo deve filosofar não
equivale, porém, a dizer que tudo depende da tecnologia, nem da
realidade nem na sua explicação. A presença de combinações particulares
de capital e de trabalho são uma forma de distribuição da sociedade
global no espaço, que atribui a cada unidade técnica um valor particular
em cada lugar, conforme já vimos anteriormente. Lembremo-nos,
igualmente, de que as variáveis ou elementos estão ligados entre si por
uma organização. Tal organização é, às vezes, puramente local, mas pode
funcionar em diferentes escalas, segundo os seus diversos elementos ou
suas frações. A organização se definiria como o conjunto de normas que
regem as relações de cada variável com as demais, dentro e fora de uma
área. Em sua qualidade de normas, isto é, de regulamento, indiferente
pois ao movimento espontâneo, sua duração efetiva não é a mesma que a da
sua potencialidade funcional. A organização existe, exatamente, para
prolongar a vigência de uma dada função, de maneira a lhe atribuir uma
continuidade e regularidade que sejam favoráveis aos detentores do
controle da organização. Isso se dá através de diversos instrumentos de
efeito compensatório que, em face da evolução própria dos conjuntos
locais de variáveis, exercem um papel de regulador, de forma a
privilegiar um certo número de agentes sociais. A organização, por
conseguinte, tem um papel de estruturação compulsória, que contraria as
tendências do dinamismo próprio. Se a organização seguisse imediatamente
a evolução propriamente estrutural, ela seria uma espécie de cimento
moldável desfazendo-se ao impacto de uma variável nova ou importante,
para se refazer cada vez que uma nova combinação se completasse. Na
medida em que a organização se toma uma norma imposta ao funcionamento
das variáveis, esse cimento se torna rígido.
É na medida em que a
economia se complica que as relações entre variáveis se dão, não apenas
localmente, mas em escalas espaciais cada vez mais amplas. O mais
pequeno lugar, na mais distante fração do território, tem, hoje,
relações diretas ou indiretas com outros lugares de onde lhe vêm
matéria-prima, capital, mão-de-obra, recursos diversos e ordens. Desse
modo, o papel regulador das funções locais tende a escapar, parcialmente
ou no todo, menos ou mais, ao que ainda se poderia chamar de sociedade
local, para cair nas mãos de centros de decisão longínquos e estranhos
às finalidades próprias da sociedade local.
9 - O espaço como um sistema de sistemas ou como um sistema de estruturas
Quando analisamos
um dado espaço, se nós cogitamos apenas dos seus elementos, da natureza
desses elementos ou das possíveis classes desses elementos, não
ultrapassamos o domínio da abstração. É somente a relação que existe
entre as coisas que nos permite realmente conhecê-las e defini-las.
Fatos isolados são abstrações e o que lhes dá concretude é a relação que
mantêm entre si. Kosik (1967, pg. 61) escreveu que "a interdependência e
a mediação da parte e do todo significam, ao mesmo tempo, que os fatos
isolados são abstrações, elementos artificialmente separados do conjunto
e que unicamente por sua participação no conjunto correspondente
adquirem veracidade e concretude. Da mesma forma, o conjunto no qual os
elementos não são diferenciados e determinados é um conjunto abstrato e
vazio".
Os diversos
elementos do espaço estão em relação uns com os outros: homens e firmas,
homens e instituições, firma e instituições, homens e infra-estrutura,
etc. Mas, como já observamos, não são relações apenas bilaterais, uma a
uma, mas relações generalizadas. Por isso se pode dizer que eles formam
um verdadeiro sistema, também pelo fato de que essas relações não são
entre as coisas em si ou por si próprias, mas entre as suas qualidades e
os seus atributos. Tal sistema é comandado pelo modo de produção
dominante nas suas manifestações na escala do espaço em questão. Isso
coloca de imediato o problema histórico. Pode-se também falar na
existência de subsistemas, formados exatamente pelos elementos dos modos
de produção particulares. O sistema é comandado por regras próprias ao
modo de produção dominante em sua adaptação ao meio local. Estaremos,
então, diante de um sistema menor ou correspondente a subespaço e de um
sistema maior que o abrange, correspondente ao espaço. Cada sistema
funciona em relação ao sistema maior como um elemento, enquanto ele
próprio é, em si mesmo, um sistema. Caso o subsistema a que referimos
seja desdobrado em subsistemas, a mesma relação se repete, cada um dos
subsistemas aparecendo como um elemento seu, ao mesmo tempo em que é
também um sistema, se se consideram as suas próprias subdivisões
possíveis. E cada sistema ou subsistema é formado de variáveis que,
todas, dispõem de força própria na estruturação do espaço, mas cuja ação
é de fato combinada com a ação das demais variáveis. As relações entre
os elementos ou variáveis são de duas naturezas: relações simples e
relações globais. Também se pode dizer, como Harvey (1964, pag. 455),
que elas são: seriais, paralelas e em "feed-back". As relações seriais
são sobretudo relações de causa e efeito, na medida em que um elemento é
causa de uma modificação no outro e assim sucessivamente, até que ele
próprio, o primeiro, seja também afetado. O que se cria é uma verdadeira
série de ações. Mas, há também o caso de ações resultantes da ação de
um elemento, por exemplo: aq afeta uma relação pré-existente aj-aj.
Nesse caso se fala de relação paralela. Há um outro tipo de relações
estudadas mais recentemente pela cibernética, isto é, a relação ai-ai na
qual o movimento e as modificações de cada elemento (ou de cada
variável ou sistema) se dão a partir de sua própria estrutura interna.
Nos dois primeiros casos as ações são externas e no terceiro as mudanças
se dão pela simples existência da variável: existir é mudar. No
primeiro caso citado, ainda segundo Harvey, trata-se de uma relação
simples, isto é, uma relação de causa e efeito, enquanto que as relações
paralelas e de feed-back seriam relações globais. A verdade é que seja
qual for a forma de ação entre as variáveis ou dentro delas, não se pode
perder de vista o conjunto, o contexto. As ações entre as diversas
variáveis estão subordinadas ao todo e aos seus movimentos. Se uma
variável atua sobre uma outra, sobre um conjunto delas, ou, ainda,
conhece uma evolução interna, ocorrem pelo menos dois resultados
práticos, que são igualmente elementos constitutivos do método. Em
primeiro lugar, quando uma variável muda o seu movimento, isso remete
imediatamente ao todo, modificando-o, fazendo-o outro, ainda que, sempre
e sempre, ele constitua uma totalidade. Sai-se de uma totalidade para
chegar a outra, que, também, se modificará. É por isso que a partir
desse impacto "individual" ou de urna série de impactos "individuais", o
todo termina por agir sobre o conjunto dos elementos formados,
modificando-os, Isso nos permite dizer que na verdade não há relação
direta entre elementos dentro do sistema, exceto sob um ponto de vista
puramente mecânico ou material. O valor real, isto é, o significado
dessa relação é somente dado pelo todo. As relações entre as partes são
mediadas pelo todo, como também as relações entre os elementos do
espaço.
Desse modo, a noção
de causa e efeito que permite uma simplificação das relações entre
elementos é insuficiente para compreender e valorizar o movimento real.
Assim, pode-se dizer que cada variável dispõe de duas modalidades de
"valor": um que vem das suas características próprias, caracteres
técnicos e técnico-funcionais e outro que é dado pelos característicos
sistêmicos, isto é, pelo fato de que cada elemento ou variável pode ser
encarado sob o ponto de vista sistêmico. Esses característicos são, em
geral, comandados pelo modo de produção e em particular pelas condições
próprias à atividade correspondente ao lugar. Ambas as condições são
definidas para cada formação econômico-social, segundo os seus lugares
geográficos e os seus momentos históricos.
10 - Elementos e estruturas
Buscamos até agora
uma definição do espaço como sendo um sistema. Todavia, esse modelo de
espaço como sistema vem sendo rudemente criticado pelo fato de que a
definição tradicional de sistema se tomou inadequada.
Na verdade, se os
elementos do espaço são também sistemas (tanto quanto o espaço) eles são
também verdadeiras estruturas. Nesse caso, o espaço é um sistema
complexo, um sistema de estruturas, submetido, em sua evolução, à
evolução das suas próprias estruturas.
Talvez não seja
demais insistir no fato de que cada estrutura evolui quando o espaço
total evolui e que a evolução de cada estrutura em particular afeta a da
totalidade. Uma estrutura, segundo François Perroux se define por uma
"rede de relações, uma série de proporções entre fluxos e estoques de
unidades elementares e de combinações objetivamente significativas
dessas unidades" (1969, pág. 371). Isso põe em evidência a noção de
desigualdade de volume ou de desigualdade de força funcional de cada
elemento. Em outras palavras, uma diferença na capacidade de criar
estoques e de criar fluxos. Tais desigualdades no interior da estrutura,
sem mesmo obrigatoriamente supor as noções de hierarquia e de
dominação, criam condições dialéticas como um princípio de mudança. O
espaço está em evolução permanente. Tal evolução resulta da ação de
fatores externos e de fatores internos. Uma nova estrada, a chegada de
novos capitais ou a imposição de novas regras (preço, moeda, impostos,
etc.) levam a mudanças espaciais, do mesmo modo que a evolução "normal"
das próprias estruturas, isto é, sua evolução interna conduz igualmente a
uma evolução. Num caso como no outro o movimento de mudança se deve a
modificações nos modos de produção concretos. As estruturas do espaço
são formadas de elementos homólogos e de elementos não homólogos. Entre
as primeiras estão as estruturas demográficas, econômicas, financeiras,
isto é, estruturas da mesma classe e que, de um ponto de vista
analítico, podem-se considerar como estruturas simples. As estruturas
não homólogas, isto é, formadas de diferentes classes, interagem para
formar estruturas complexas. A estrutura espacial é algo assim, uma
combinação localizada de uma estrutura demográfica específica, de uma
estrutura de produção específica, de uma estrutura de renda específica,
de uma estrutura de consumo específica, de uma estrutura de classes
específica e de um arranjo específico de técnicas produtivas e
organizativas por aquelas estruturas e que definem as relações entre os
recursos presentes. A realidade social, tanto quanto ao espaço, resultam
da interação entre todas essas estruturas. Pode-se dizer também que as
estruturas de elementos homólogos mantêm entre elas laços hierárquicos
enquanto as estruturas de elementos heterogêneos mantêm laços
relacionais. A totalidade social é formada da união desses dados
contraditórios, da mesma maneira que o espaço total. As estruturas e os
sistemas espaciais, da mesma forma que as demais estruturas e sistemas,
evoluem segundo três princípios: 1 - O princípio da ação externa,
responsável pela evolução exógena do sistema; 2 - O intercâmbio entre
subsistemas (ou subestruturas) que permite falar de uma evolução interna
do todo, uma evolução endógena, e; 3 - Uma evolução particular a cada
parte ou elemento do sistema tomados isoladamente, evolução que é
igualmente interna e endógena. Haveria, assim, um tipo de evolução por
ação externa e dois outros por ação interna ao sistema, sendo que o
último deles dever-se-ia ao movimento íntimo, próprio de cada parte do
sistema. Todavia, não se deve perder de vista o fato de que a ação
externa somente se exerce através dos dados internos. Nesse caso, ao
mudarem as características próprias a cada elemento, o seu intercâmbio
ou a sua forma de recepção ou reação a esforços externos já não é mais a
mesma. A ação externa ou endógena é apenas um detonador, um vetor que
traz para dentro do sistema um novo impulso, mas que por si só não tem
as condições para valorizar esse impulso. O mesmo impulso externo tem
uma repercussão diferente segundo o sistema em que se encaixou. Por
exemplo, uma certa quantidade de crédito atribuído a uma atividade
econômica em todo um país não vai ter as mesmas repercussões em todos os
lugares; o aumento ou a diminuição do preço unitário de um bem também
não repercute da mesma maneira em toda parte. O mesmo se pode dizer da
abertura de uma estrada ou de sua promoção. As diferenças de resultado
aqui sugeridas são dadas pelas condições locais próprias, que agem como
um modificador do impacto externo. Nesse sentido podemos repetir a
opinião de Godelier (1967, pag. 254-255) para quem "todo sistema e toda
estrutura devem descrever-se como realidades "mistas" e contraditórias
de objetos e de relações que não podem existir separadamente, isto é, de
tal modo que sua contradição não exclua a sua unidade". Essa forma de
ver o sistema ou a estrutura espacial a partir da qual os elementos são
considerados como estruturas, leva também a admitir que cada lugar não é
mais do que uma fração do espaço total. Vimos, poucas linhas acima, que
o vetor externo só ganha um valor específico como conseqüência das
condições do seu impacto, mas também sabemos que o chamado movimento
interno das estruturas ou as relações entre elas não são independentes
de leis mais gerais. É por essa razão que cada lugar constitui na
verdade uma fração do espaço total, pois só esse espaço total é objeto
da totalidade das relações exercidas dentro de uma sociedade, em um dado
momento. Cada lugar é objeto de apenas algumas dessas relações "atuais"
de uma dada sociedade e, através dos seus movimentos próprios, apenas
participa de uma fração do movimento social total.
O movimento que
estamos tentando explicitar nos leva a admitir que o espaço total, que
escapa à nossa apreensão empírica e vem ao nosso espírito sobretudo como
conceito, é que constitui o real, enquanto as frações do espaço que nos
aparecem tanto mais concretas quanto menores, é que constituem o
abstrato na medida em que seu valor sistêmico não está na coisa tal como
a vemos, mas no seu valor relativo dentro de um sistema mais amplo.
Quando nos referimos, por exemplo, àquela casa ou àquele edifício,
àquele loteamento, àquele bairro, são todos dados concretos, - concretos
por sua existência mas, na verdade, todos são abstrações, se não
buscarmos compreender o seu valor atual em função das condições atuais
da sociedade. Casa, edifício, loteamento, bairro, estão sempre mudando
de valor relativo dentro da área onde se situam, mudança que não é
homogênea para todos e cuja explicação se encontra fora de cada um
desses objetos e só pode ser encontrada na totalidade de relações que
comandam uma área bem mais vasta. Assim também é com os homens, as
firmas, as instituições. A noção de estrutura aplicada ao estudo do
espaço tem essa outra vantagem através da noção de sistema, analisamos
os elementos, seus predicados e as relações entre tais elementos e tais
predicados. Quando a preocupação é com as estruturas, sabemos que se
essa noção de predicado é aliada a cada elemento (aqui subestrutura)
sabemos antes que sua real definição depende sempre de uma estrutura
mais ampla, na qual aquela se insere.
11 - Uma observação final necessária: as questões práticas
Um esquema de
método, por mais logicamente bem construído que seja, encontrará
dificuldades em sua, realização. Um esquema de método pretende ser,
também, uma hipótese de trabalho, aplicável: 1 - por uma equipe de
pesquisadores; 2 - a uma realidade concreta; 3 - realidade que é
reconhecível, a um dado momento, através de um certo número de fenômenos
e dados que os representam. Cada um desse dados constitui uma limitação
prática: a complexidade ou dinamismo da realidade a se analisar; o
número e a representatividade dos dados disponíveis; a constituição da
equipe de trabalho e sua formação anterior, profissional e teórica, sua
disponibilidade na aceitação do tema e do esquema propostos. Tudo isso,
além de outros fatores reconhecidos universalmente por quem já se
envolveu ativamente em pesquisa. Quanto à formação da equipe de trabalho
e à correspondente distribuição das tarefas, a divisão de trabalho
assume uma feição crítica, na medida em que somente será válida -
permitindo alcançar plenamente os objetivos buscados - caso o todo,
assim dividido para efeitos práticos da análise, seja, depois,
reconstituível, de modo a permitir uma definição aceitável da realidade e
o reconhecimento dos seus processos fundamentais. É evidente que o
resultado depende, igualmente, da prévia compenetração do grupo de
trabalho, tarefa ativa cujo requerimento de base é a compreensão dos
objetos de estudo e dos objetivos deste. É a partir dessa premissa que
as tarefas individuais podem ser entendidas. Se o caminho escolhido for o
contrário, a síntese não se fará jamais, seja qual for o tempo dedicado
à pesquisa de dados e ao reconhecimento de fatos. Tal compenetração
deve partir, também, da idéia de que o objeto de análise é o Presente,
toda análise histórica sendo apenas o indispensável suporte à
compreensão de sua produção. Nesse caso, é importante levar em conta que
não se trata de efetuar uma prospecção arqueo16gica que seja, em si
mesma, uma finalidade. Trata-se de um meio. Isso hão nos desobriga de
buscar uma compreensão global e em profundidade, mas o tema de
referência não é uma volta ao passado como dado autônomo na pesquisa,
mas como maneira de entender e definir o Presente em vias de se fazer (o
Presente já completado pertence ao domínio do Passado), permitindo
surpreender o Processo e, por seu intermédio, ensejando a apreensão das
tendências, que podem permitir vislumbrar o futuro possível e as suas
linhas de força.
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