MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2008. 312 p.
Nécio TURRA NETO*
* Professor do Departamento de Geografia da UNICENTRO/Guarapuava-PR e Doutorando em Geografia pela UNESP/Presidente Prudente. Email: turraneto@yahoo.com.br.
Doreen Massey é uma autora que conhecemos apenas por alguns poucos artigos traduzidos para o português e publicados no Brasil. Finalmente, chega a tradução deste livro, Pelo Espaço, trabalho acompanhado por Rogério Haesbaert, que também faz a apresentação ao público brasileiro da autora, da sua obra e deste livro em especial.
É possível identificar facilmente no livro as idéias já esboçadas nesses conhecidos artigos, como: “Um Sentido Global do Lugar”, publicado no livro “Espaço e Diferença”; “Pensamentos Itinerantes”, publicado recentemente na Revista Terra Livre, n. 27 e, sobretudo, o artigo “Filosofia e Política da Espacialidade: algumas considerações”, publicado na Revista GEOgraphia, n. 6, da UFF. A leitura prévia destes textos contribui muito para um mergulho mais seguro no livro, visto que este parece estender e melhor fundamentar todos aqueles, inserindo-os e articulando-os dentro de um mesmo quadro teórico-conceitual.
O livro é dividido em cinco partes e em quinze capítulos, além de algumas inserções provocativas que ela chama de “Confiar na ciência? 1;... 2; ... 3”, nas quais Massey procura articular as imaginações sobre espaço no quadro de referências mais amplas do pensamento científico e suas transformações. Nesses pontos, a autora apresenta uma releitura de conhecidas associações (como a associação entre a imaginação de espaço da modernidade e a física Newtoniana) e questiona outras (como a euforia de pesquisadoras e pesquisadores diante das teorias da complexidade, para falarem de acaso e indeterminação do espaço).
O propósito central do livro é construir uma nova imaginação (e essa é a expressão da própria autora) de espaço, diferente daquelas construídas no pensamento Ocidental durante a modernidade – mas também agora, na pós-modernidade –, que sempre o viram como morto, fixo, atemporal. Retirado desse quadro conceitual que o associava a tudo que é estático, o espaço em Massey é pensado a partir de um outro conjunto de idéias, como inter-relação, contemporaneidade dinâmica, abertura radical, heterogeneidade.
Já na parte um (Proposições Iniciais), a autora apresenta sua proposta alternativa para conceituar espaço, em que ele é visto como “produto de inter-relações”, como “esfera da possibilidade de existência da multiplicidade”, e como sempre em construção e, portanto, aberto, inacabado. Para Massey, pensar o espaço dessa forma é muito mais do que afirmar que o espacial é político, é abrir a Geografia e a discussão espacial em direção a um diálogo com as principais vertentes da política progressista contemporânea, como as teorias feministas e queer e as teorias pós-coloniais. O que é um alívio para nós, geógrafos e geógrafas, acostumadas a ver essas discussões presentes apenas em outros campos das Ciências Sociais, como Antropologia, Educação, Sociologia... Assim, o livro de Massey pode nos oferecer uma bússola, uma referência da própria Geografia, para nos guiar no quadro desse debate teórico-político.
Para exemplificar essas articulações, vale a pena acompanhar um pouco do argumento da autora, para quem sua concepção de espaço dialoga bem com uma política antiessencialista em questões de identidade de grupos sociais e de lugares, enfatizando sua construção relacional. Emerge daí a questão da Geografia das relações na construção dessas identidades, pois o espaço é produto de inter-relações e elas só podem existir num espaço de multiplicidade, onde não há nada dado de forma definitiva.
Essa idéia do espaço como esfera de possibilidade da existência da multiplicidade articula-se com a idéia política que salienta a diferença e a heterogeneidade. Uma política que questiona as narrativas do Ocidente, do masculino e do branco.
Inspirando-se nas teorias pós-coloniais, a autora defende o reconhecimento da contamporaneidade de múltiplas trajetórias históricas, em substituição à idéia de uma única história universal, que colocou todas as diferenças numa mesma linha do tempo. Para ela, reconhecer a heterogeneidade e a multiplicidade à sério, só é possível pela consideração da espacialidade, que é a esfera que permite a contemporaneidade radical da diversidade e as suas relações. Trata-se de reconhecer a coexistência de outros, com trajetórias históricas próprias; trajetórias que se cruzam, se conectam e se desconectam, formando assim o espaço a partir dessas relações.
Por fim, imaginar o espaço como aberto e em processo, articula-se com a idéia política de abertura do futuro. O contraponto aqui é a idéia moderna de progresso, na qual o desenvolvimento histórico já estaria com o trajeto traçado e o destino acertado. Não só a história, mas também o espaço é aberto, pois há ainda muitas combinações relacionais possíveis a serem feitas. Nesse sentido, “conceituar o espaço como aberto, múltiplo e relacional, não acabado sempre em devir, é um pré-requisito para que a história seja aberta e, assim, um pré-requisito, também, para a possibilidade da política” (p. 95).
Há uma “pluralidade de trajetórias, uma simultaneidade de estórias-até-agora” (p. 33), cujas conexões são sempre cambiantes e conjunturais, o que faz com que o próprio lugar se forme como um feixe dessas articulações, um aqui-agora em que se encontram diversas trajetórias. O lugar seria, assim, também uma eventualidade, sempre aberto a novas conexões, desconexões...
Na parte dois do livro (Associações Pouco Promissoras), Massey apresenta algumas filosofias que, ao discutirem o tempo, acabaram definindo espaço. São as filosofias de Bergson, o estruturalismo e o desconstrucionismo Derridiano. Em todas essas filosofias, o espaço é visto como dissociado e oposto ao tempo; ele é o reino da fixação, da estase, do que precisa ser superado para o movimento libertador do tempo e da história.
Essa imaginação de espaço é amplamente criticada pela autora. Mas, como entende que espaço e tempo, apesar de distintos, são indissociáveis, Massey se apropria de algumas idéias dessas filosofias sobre o tempo (liberdade, desarticulação, surpresa), como características que também devem ser atribuídas ao espaço, reformulando o entendimento de ambos, por sua constituição conjunta.
Se o tempo se revela como mudança, então o espaço se revela como interação. Neste sentido, o espaço é a dimensão social não no sentido da sociabilidade exclusivamente humana, mas no sentido do envolvimento dentro de uma multiplicidade. Trata-se da esfera da produção contínua e da reconfiguração da heterogeneidade, sob todas as suas formas – diversidade, subordinação, interesses conflitantes. À medida que o debate se desenvolve, o que começa a ser focalizado é o que isso deve trazer à tona: uma política relacional para um espaço relacional (p. 97/98).
Mudança requer interação, e essa requer espaço. Assim, a multiplicidade é fundamental para a geração da temporalidade, para haver multiplicidade tem que ocorrer espaço. Assim, o espaço nos oferece a possibilidade da história.
A parte três do livro é uma pergunta: “Vivendo em Tempos Espaciais?”. Nela, a preocupação da autora continua sendo a “desconstrução” de imaginações “pouco promissoras” e tendencialmente conservadoras de espaço, surgidas em tempos de globalização.
As teorias pós-coloniais informam-na em sua reconstrução da espacialidade da modernidade. Dentro da imaginação moderna, sociedades, comunidades, nações, eram tidas como tendo relações com espaços delimitados, internamente coerentes e diferenciados uns dos outros pela separação. Para Massey, essa foi uma forma de imaginar o espaço que, mais do que representar a realidade como um espelho, serviu para construí-la. Assim, a modernidade viu a forma do Estadonação ser difundida, todo o espaço ser dividido/regionalizado e as sociedades localizadas, com mitos de origem telúrica e de coerência interna, com fronteiras tidas como intransponíveis.
É essa imaginação de espaço que também hoje é reavivada em muitos movimentos contrários à globalização, reclamando a perda das “velhas coerências espaciais”, numa espécie de “nostalgia por uma coisa que nunca existiu”; movimentos aprisionados à uma visão reacionária do lugar como fechado, coerente, com uma história construída a partir de dentro.
O argumento forte dessa parte (Capítulo 6) é que as especificidades no espaço resultam muito mais do contato, do que do isolamento espacial. Nesse sentido, o lugar deve ser pensado também como produto de inter-relações, de forma que não há um ponto de partida original a ser recuperado, uma posição que seja anterior à relação. Argumento que já se encontra esboçado no artigo “Um sentido global do lugar”.
Também na parte três, Massey questiona o discurso da instantaneidade em tempos de globalização, que forja uma imagem de espaço como pura horizontalidade, sem profundidade. Nessa imaginação, o temporal é oposto à conectividade instantânea do espaço global, como se os elementos em contato não fossem eles mesmos portadores de história. A figura central das críticas é Jameson e sua idéia de “presente perpétuo”, pela qual viveríamos agora na era do espaço, um espaço que é sem tempo. Também problematiza os discursos que hoje falam da vitória do espaço sobre o tempo e, ao mesmo tempo, do seu aniquilamento. A lógica é a passagem de uma imaginação moderna para uma pós-moderna, em que o espaço visto como um “mundo de lugares” delimitados é tido agora como “mundo de fluxos”.
Na modernidade, os espaços separados eram colocados numa mesma linha histórica. A preocupação era com o tempo, com o progresso dos “atrasados”. Na pós-modernidade, a globalização, o espaço de fluxos, a ampliação da conexão entre os lugares (que seria a vitória do espaço sobre o tempo, ou do tempo pelo espaço, dependendo do autor que se considere), apagou as diferenças históricas, colocando todos no mesmo presente. Aqui também trata-se de um espaço sem tempo. Uma simultaneidade estática em que a liberdade de futuro é também aniquilada. Para Massey é fundamental que reconheçamos a multiplicidade de estórias-até-então, e que, na verdade, o que está sendo conectado, não são elementos estáticos, mas trajetórias históricas em processo que, por isso, articulam-se agora, mas podem seguir suas trajetórias e desarticularem-se adiante.
Nesse ponto, retoma mais uma vez o argumento pós-colonial. A história Ocidental de conquista da Europa dos outros continentes e povos dispõem o tempo como uma linha única que articulou os outros que estavam lá, parados a espera desse acontecimento. Os outros não são vistos como portadores de histórias próprias e esse contato não é visto como um encontro entre diferentes trajetórias. As diferenças espaço-temporais são reduzidas a diferenças no tempo de uma mesma história, a história da Europa. Fecha-se assim, a possibilidade de construção de histórias alternativas.
Na época atual, também a diversidade espacial é reduzida a uma diferença temporal, ou seja, a Geografia mais uma vez é reduzida à História. Quando se fala da inevitabilidade da globalização, e de que todos os povos vivem num mesmo mundo de presente, temos também uma negação da abertura da história. A atenção com esses discursos não deve ser apenas no sentido de que eles não espelham a realidade, mas também com o fato de que a realidade a partir deles está sendo assim construída.
A parte três se encerra com um capítulo no qual Massey rechaça o discurso da aniquilação do espaço pelo tempo, novamente chamando a atenção para a indissociabilidade de ambos, e outro capítulo em que começa a esboçar alternativas à essa imaginação. Para ela, mesmo no que se refere ao ciberespaço, a questão central “[...] não é se o espaço será aniquilado ou não, mas que tipo de multiplicidades (padrões de unicidade) e relações serão co-construídas com esses novos tipos de configurações espaciais” (p. 139).
As partes quatro e cinco, respectivamente, “Reorientações” e “Uma Política Relacional do Espacial”, são os momentos em que a autora, dando por encerrada a sua “desconstrução” das problemáticas imaginações de espaço, aprofunda seu trabalho de (re)construção de uma imaginação alternativa do espaço, com vistas a chamar a atenção para o desafio político que ele nos coloca.
Na parte quatro também podemos encontrar, de forma concentrada, sua discussão sobre o conceito de lugar, que é um importante terreno para a política. “[...] O que é especial sobre o lugar é, precisamente, esse acabar-juntos, o inevitável desafio de negociar um aqui-e-agora [...]” (p. 203). Uma negociação que deve acontecer não só entre os humanos, mas também entre esses e aquilo que no lugar é o não-humano, a natureza. Uma ponte promissora com a Geologia é realizada em algumas partes do livro, em que as próprias trajetórias da natureza se encontram com as múltiplas trajetórias humanas, para formar espaço e lugar.
O lugar, assim, é compreendido como um encontro de trajetórias em processo (naturais e humanas). Um encontro que não é definitivo, mas conjuntural e que o movimento pode conduzir à dispersão, à novas conexões e desconexões. As trajetórias em processo que se encontram no aquiagora vão se contaminar, uma passando a fazer parte da constituição da outra, mas nunca vão chegar a formar um todo coerente e estável, mesmo porque, o lugar nunca é fechado ao que vem da sua relação com outros lugares. A abertura para a política não poderia ser mais explícita, no sentido em que somos forçados a reconhecer que o aqui-agora é sem precedentes na história e está totalmente aberto ao futuro. Daí a nossa “responsabilidade”.
Para a autora,
[...] todas as negociações de lugar acontecem no movimento entre identidades que estão se movendo. Significa, também, [...] que qualquer política que apreenda as trajetórias em pontos diferentes está tentando articular ritmos que pulsam em diferentes compassos. Este é outro aspecto do caráter elusivo do lugar que torna a política tão difícil (p. 225).
O lugar para Massey não é entendido, como normalmente se encontra nos discursos contrários à globalização, como uma vítima de processos globais, mas como também implicado nos processos de produção do mundo (capítulo 10). Assim, é preciso contextualizá-lo no quadro das geometrias de poder globais em que cada lugar ocupa posição diferenciada, antes de sair em defesa do local contra o global.
Dizer que o local participa da construção do global significa que políticas locais referendam as políticas e práticas produzidas pelos agentes da globalização. Não se pode defender o local contra o global simplesmente, mas procurar alterar os efeitos e mecanismos do próprio global localmente. Essa é uma questão da responsabilidade do local pelo global. Mas, tanto as possibilidades de intervenção, quanto sua natureza e potencial variam também de acordo com a posição relacional de cada lugar.
A maior parte da literatura de defesa do lugar vem do Sul e isso não é por acaso, pois ali a globalização parece chegar com força avassaladora [talvez nesse contexto pudéssemos situar inclusive a discussão de lugar apresentada por M. Santos (2002)]. Mas em outros pontos, pode ser que uma defesa do lugar não seja politicamente defensável.
Levar a sério a construção relacional de espaço e lugar significa considera o contexto em que as relações se dão, para aí pensar nas desiguais articulações de cada lugar em particular dentro das geometrias de poder. Não há regra única a ser seguida.
A relação local com o global irá variar e, em conseqüência, também irão variar as coordenadas de qualquer política local com potencial de desafiar a globalização. Sem dúvida, argumentar pela defesa do lugar, de uma maneira indiferenciada, significa, de fato, manter [...] [a] associação do local com o bom e o vulnerável [...] (p. 153).
Para ela (Capítulo 14), o debate não deveria ser colocado em termos de “formas espaciais abstratas” (lugar fechado/espaço aberto; lugar concreto, espaço abstrato), o que seria cair no “fetichismo espacial”, mas sempre considerar as relações pelas quais a abertura ou o fechamento são constituídos como estratégias móveis das relações (também móveis) de poder. Nesse sentido, é preciso considerar o contexto e o conteúdo, mais que formas abstratas estabelecidas a priori.
Como últimas palavras do livro, a autora apresenta o que poderíamos entender como uma definição de espaço, que sintetiza um pouco o seu argumento: O espaço é tão desafiador quanto o tempo. Nem o espaço nem o lugar podem fornecer um refúgio em relação ao mundo. Se o tempo nos apresenta as oportunidades de mudança e (como alguns perceberiam) o terror da morte, então o espaço nos apresenta o social em seu mais amplo sentido: o desafio de nossa interrelacionalidade constitutiva – e, assim, a nossa implicação coletiva nos resultados dessa inter-relacionalidade, a contemporaneidade radical de uma multiplicidade de outros, humanos e não-humanos, em processo, e o projeto sempre específico e em processo das práticas através das quais essa sociabilidade está sendo configurada (p. 274).
Esperamos, com essas poucas palavras, ter dado conta da complexidade do pensamento de Massey e estimular outros/as colegas da Geografia a conhecerem o pensamento dessa geógrafa, abrindo-se assim também para outras referências da Geografia anglo-saxônica, cuja produção tem estimulado um repensar da própria Geografia e do conceito de espaço.
O livro de Massey, além disso, permite importantes interlocuções com autores brasileiros, tensionando-os e enriquecendo-os. O próprio Haesbaert sugere uma aproximação do seu conceito de multiterritorialidade com o conceito de lugar de Massey. Também é possível vislumbrar diálogos com o pensamento de Milton Santos, sobretudo no que se refere à sua ontologia do espaço, a sua proposta de método e ao seu debate sobre o lugar, apresentados no livro “A Natureza do Espaço...”.
REFERÊNCIAS CITADAS:
MASSEY, D. Pensamentos Itinerantes. Terra Livre, São Paulo, ano 22, v. 2, n. 27, p. 93 – 100, jul./dez.
2006.
__________. Filosofia e política da espacialidade: algumas considerações. GEOgraphia, Rio de Janeiro,
ano6, n. 12, p. 7 – 23, 2004.
__________. Um sentido global do lugar. In: ARANTES, A. A. (org.). O espaço da diferença. Campinas:
Papirus, 2000. p. 176 – 185.
SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2002.
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