MOREIRA, Ruy. Pensar e ser em Geografia. São Paulo: Contexto, 2007 (188 páginas).
Há muito tempo que Ruy Moreira está presente em nossas preocupações geográficas, um autor vivaz e intenso em todas as suas ocupações intelectuais. Com a ausência do grande Milton Santos, consideramos ser ele o maior responsável pela reflexão que envolve os troncos do saber que constitui aquilo que reconhecemos como geográfico. O título desta obra é a demonstração clara da atenção filosófica depositada pelo autor para os temas que perpassam o universo geográfico, mas que não se encerram nele. Ruy Moreira consegue sintetizar as angústias do nosso tempo na escolha do título da obra. Estamos na encruzilhada em que a modernidade nos inseriu, entre o pensar e o ser.
A obra é o retrato da caminhada deste autor nos últimos 30 anos, os textos se referem aos trabalhos escritos entre 1978 e 2006. A organização dos capítulos da obra, segue em três grandes eixos de discussão oferecidos por Moreira, mas que possuem uma interface interna muito clara e precisa. No primeiro capítulo temos os textos que demonstram interesse pelo desenrolar da história do pensamento geográfico, no segundo capítulo temos os textos de caráter epistemológico e no terceiro capítulo os que permeiam discussões ontológicas.
Desta forma, esta coletânea expressa uma variação no que se refere à temperatura, desde textos que foram elaborados no calor dos acontecimentos do movimento de renovação da geografia, tão sentido pelos geógrafos brasileiros no final da década de 1970, até aqueles elaborados com a calma e por vezes, a frieza característica das reflexões internalistas que permearam toda a obra de Moreira, tratando do fundamento desta ciência.
Uma grande característica dos textos de Ruy Moreira é conseguir criar e firmar pontes entre a geografia e os demais campos do saber, trabalhando de modo não usual e com desconforto em relação ao comum e ao convencional. Seus escritos subvertem as lógicas geográficas em muitos momentos, principalmente quando a geografia se vê diante dos limites de suas próprias construções teóricas. Com maestria ele se aproxima das artes, como no texto de abertura desta coletânea, “As formas da geografia e do trabalho do geógrafo no tempo” escrito em 1993 e publicado em 1994, buscando no lema maior do cinema novo “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”, um eixo de discussão acerca dos limites da sanha geográfica pela técnica, afirmando que o geógrafo “No passado, achou que a fotointerpretação era a interpretação da foto, quando era a descrição do que estava fotografado. [...] E hoje acha que basta o programa de geoprocesamento”.
É um alerta para a necessidade de criação de uma base teórica para pensarmos a imagem frente aos paradigmas espaciais do presente. Neste texto e nos demais textos que tratam das questões da história do pensamento geográfico percebe-se todo o furor comprometido e sistemático de suas observações sobre o caminhar desta ciência. Baseando-se em autores como Henry Lefebvre, Yves Lacoste, Pierre George, Massimo Quaini, Milton Santos entre outros, ele busca a todo momento esmiuçar os componentes teóricos geográficos. No balanço dos dez anos do movimento de renovação, que realiza no texto “A renovação da geografia brasileira no período 1978-1988”, escrito em 1992 e revisado em 2000, ele aponta para os diversos espectros da renovação, apresentando elementos das críticas em relação à epistemologia, à ideologia e à afirmação do objeto geográfico, demonstrando a carência do olhar ontológico em geografia e a preocupação com o sujeito, temas recorrentes em seus textos e ausentes na geografia contemporânea.
O interesse de Moreira pela consagração do espaço como categoria central na geografia e como construção teórica que permite as interfaces geográficas com o mundo e com as outras ciências, é marcante e essencial para compreendermos sua obra.
No terceiro texto intitulado “A sociedade e suas formas de espaço no tempo”, escrito originalmente em 1998, ele realiza uma corajosa síntese dos quadros "espaçotemporais” do desenrolar da vida humana. Partindo do espaço inicial surgido com a descoberta do fogo e a organização da agricultura, passando ao longo dos nove espaços definidos por ele, tratando das diversas dimensões dos modos espaciais que os indivíduos e as coisas em suas materialidades se expressaram. Um fator rico
neste texto é a capacidade de Moreira em encontrar traços temporais intensos para afirmar sua proposta de periodização. Entre o primeiro e o nono espaço, ele elabora os pilares históricos da configuração do mundo, chegando ao alvorecer da era global, com a aceleração, a banalização e a ecletização características deste tempo.
Sem promover um corte brusco entre as discussões apresentadas como históricas de outras tidas como epistemológicas ou ontológicas, Moreira consegue criar uma fronteira permeável entre seus textos de modo que, como ele mesmo afirma, os textos possam ser lidos por partes ou seguindo a temporalidade que foram escritos. Nos textos que estão organizados sob o título de “Epistemologia”, o autor oferece instigantes debates, que contribuíram para que as inquietações geográficas fossem por vezes apaziguadas e em outras agudizadas.
Nesta segunda parte podemos conferir e reler o seu emblemático “A geografia serve para desvendar máscaras sociais”, de 1978, escrito como protagonista da intenção de conferir no momento do debate do movimento de renovação, um estatuto epistemológico próprio para a geografia. A partir de uma crítica ao posicionamento dos geógrafos frente à realidade, apresenta ali, as discussões ao redor do conceito de espaço com a intenção de “[...] ver se o espaço foi sempre o chão desse saber, como se explica não ter sido notado, dotado do mínimo rigor teórico e pistemológico e usado como instrumento de conhecimento e transformação das sociedades?”. Este texto, sempre muito comentado entre os geógrafos, possui forte apelo ideológico, como devem ser os textos que visam abalar a estrutura do já concebido.
Após este texto, a geografia dificilmente poderia se posicionar de outra forma que não seja como ciência social. O viés marxista tão presente no texto é o sustentáculo de seu “estatuto epistemológico”, como ele mesmo afirma em uma de suas interessantes notas, e a consolidação da geografia como ciência social nos parece extrapolar inclusive a vertente marxista, estando presente nos diversos modos paradigmáticos que esta ciência se apresenta na contemporaneidade.
Este percurso comprometido com análises a partir de categorias embebidas de olhar geográfico e conceitos forjados no seio desta ciência, segue em mais dois textos da segunda parte, “As categorias espaciais da construção geográfica das sociedades” escrito em 2001 e “Conceitos, categorias e princípios lógicos para o método e o ensino da geografia” escrito em 1987. Nestes textos ele aprofunda seus argumentos em relação à presença do raciocínio dialético na análise espacial, busca pensar a unidade espacial a partir de autores clássicos da geografia, como Paul Vidal de La Blache, Eliseé Reclus, Jean Brunhes e Max Sorre, unidade esta que convive com a diversidade característica própria do espaço, promovendo tensões que expressam o contraditório modo de ser espacial. A idéia de contradição é viva em Moreira, calcada no materialismo histórico, é percebida de maneira inconteste em seus esquemas criados no texto de 1987, em que apresenta as categorias paisagem e território, que juntamente com a categoria central espaço, permitem as incursões do pensamento acerca da realidade, destrinchando as relações entre o homem e a natureza e entre os homens entre si.
No último texto desta segunda parte intitulado “Diálogo como os humanos e os físicos: por um mundo experimentado por inteiro”, escrito em 1994, percebemos algo um pouco distinto dos outros textos do livro. Demonstrando sua admiração por Armando Correa da Silva, como em outros textos, Moreira apresenta suas dúvidas acerca da consolidação do pensamento moderno, sustentado na razão cartesiana e no princípio da divisão. Neste texto o autor se demonstra instigado com estas outras formas de saber que apresentam proximidades com as discussões do holismo, afirma ele que “Ao contemplar a possibilidade de ver e praticar o mundo nesse enfoque holistadiferenciado do espaço, o próprio geógrafo estaria chamando a sociedade como um todo para este diálogo”. Sem nos precipitarmos na análise, podemos dizer que nos parece que ainda há uma certa desconfiança latente em Moreira ao tratar da perspectiva holista, visto que em poucos momentos de sua grande obra ele perpassa esta vertente.
Esta desconfiança, da qual também participamos, pode ser resultado dos ganhos que a perspectiva fenomenológica e seus estudos ontológicos trouxeram gradativamente ao pensamento de Moreira.
Ruy Moreira, fiel a sua trajetória incomum, apresenta uma terceira parte do livro com textos que discutem elementos considerados por muitos como irreconciliável à geografia, os textos se avizinham da literatura, das artes e das discussões que tratam de subjetividade. Em “O mal-estar espacial no fim do século XX”, Ruy Moreira realiza uma bela reflexão sobre o distanciamento que ocorreu entre o “ente” e o “ser”, o autor localiza na constituição da cisão cartesiana e a separação entre homem e natureza um processo de desnaturização, que posteriormente levou ao processo de desterreação culminando com a desterritorialização, ou em suas palavras “A desterritorialiação é a quebra definitiva da relação de corpo que o homem mantinha com o chão e o cosmos...”.
Em outro texto desta terceira parte, o autor realiza a maior ousadia presente no livro, o título já provoca o leitor “Ser-tões: o universal no regionalismo de Graciliano Ramos, Mário de Andrade e Guimarães Rosa”. É uma tentativa deliberada de abalar as estruturas acinzentadas da ciência. Nas suas afirmações controvertidas tem-se a constatação de que a obra literária dos autores trabalhados não dicotomizam o espaço.
Há, em suas palavras, uma fusão entre a internalidade subjetiva e a externalidade objetiva, com clara observância de semelhança entre as preocupações e até mesmos as construções teóricas dos geógrafos e demais cientistas sociais. Um namoro fecundo com a arte é promovido nas poucas páginas deste texto, que na verdade é a articulação de dois textos escritos com intervalo de quatro anos 1992 e 1996. Para ele, o belo "Grandes Sertões: Veredas" de Guimarães Rosa, ficando apenas com este aperitivo, "... é a reflexão universalista do ser regionalizado”, algo que para Moreira, é no mínimo uma almejada constatação geográfica, que na literatura é evidente.
Seguindo sua vocação para desestabilizar o pré-concebido, Moreira nos brinda com seu “A identidade e a representação da diferença na geografia” de 1999, buscando subsídios em autores contemporâneos que travam um rico debate com a modernidade, entre eles Jacques Derrida e Gilles Deleuze. Este texto, como os demais da terceira parte, se mostra provocador, tratando de identidade e diferença. Ele decreta que o maio de 1968 na França fez ecoar pelo mundo, a valorização da diferença e que a geografia optou sempre pela identidade; principalmente no trato dado ao conceito de região, que em sua visão “... a diferença geográfica virou identidade”. Romper com esta perspectiva e abrir para a ontologia permitirá o surgimento de uma “... geografia de um espaço que pode ser pensado como a coabitação tensa da diferença e da unidade”.
No texto final, escrito em 2005, “Sociabilidade e espaço: as sociedades na era da terceira revolução industrial” Moreira traz à tona o conceito de Gênero de Vida de Vidal de La Blache, para afirmar a necessidade de olhar para estas formas de vida que ainda resistem como diferença, recusando as demandas criadas pelas sociedades industriais.
Os limites de uma resenha nos trazem incapacidade de demonstrar a complexidade de textos tão instigantes como os de Ruy Moreira. Entre o ser e o espaço fundam-se relações que para ele seja talvez, a maior necessidade de reflexão geográfica.
Ou como afirmou em recente curso ministrado, será que a geografia teria que se preocupar menos com sua afirmação no mundo como epistemologia e sim buscar traçar caminhos outros de interpretação da realidade, aprofundando suas interfaces com as questões ontológicas? Os dados estão lançados e entre este pensar e ser da geografia
paira livre um homem coerente e inquieto que traduz em grande medida os conflitos do nosso tempo e as clausuras incontornáveis da geografia.
Sandro de Oliveira Safadi
Geógrafo, Doutorando em Geografia e Professor
Substituto do Instituto de Estudos Sócio-ambientais
da Universidade Federal de Goiás.
Publicado originalmente em Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 2, n. 3 maio/2008
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