A Quimera é um monstro mitológico. Fabuloso, possuia corpo de cabra, cabeça de leão e cauda de dragão. Criada pelo rei de Cária, mais tarde assolaria este reino e o de Lícia com o fogo que vomitava. Foi morta pelo herói Belerofonte, montado no cavalo alado Pégaso. Simboliza aquilo que é produto da imaginação, a fantasia, o sonho e a utopia.
24 de set. de 2009
Sugestão de bibliografia: Pós-modernidade
Sobre pós-modernidade
ANDERSON, Perry. As Origens da Pós-Modernidade.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas
BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo.
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido.
BAUMAHARVEY, D. A condição pós-moderna.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio.
JAMENSON, Frederic. Espaço e imagem
WOOD, Ellen et FOSTER, John. (Org.). Em Defesa da História - Marxismo e Pós-Modernismo
Entrevista: David Harvey
David Harvey é geógrafo. Atualmente professor em Harvard. A entrevista abaixo foi dada a revista Carta Maior em março de 2009
IHU On-Line - Quais são para o senhor, as propostas da esquerda frente à crise internacional?
David Harvey - O pensamento de esquerda não convergiu para algum consenso de propostas para enfrentar as dificuldades presentes, e pode levar algum tempo até que tal consenso surja. Estamos no início de uma crise de legitimação no mundo inteiro, em que um número cada vez maior de pessoas tem de questionar se o capitalismo é uma forma viável de satisfazer as necessidades humanas. Isto, por sua vez, levanta a questão de alternativas. Atualmente, há pessoas que procuram reformar o capitalismo de modo a obter maior igualdade e sustentabilidade ambiental versus aquelas que defendem um caminho mais revolucionário que procuraria derrubar diretamente o capitalismo.
Entre estas últimas, há uma cisma profunda entre as pessoas que consideram vital tomar o poder estatal e revolucioná-lo a caminho do socialismo e aquelas que procuram construir sistemas sociais e político-econômicos fora do capitalismo, do Estado capitalista e de suas instituições dominantes. O que é possível depende muito das circunstâncias políticas e econômicas. Nos Estados Unidos, sou a favor de um caminho de reformas que, gradativamente, leve o sistema na direção de soluções mais revolucionárias e não consigo ver outra forma de fazer isso exceto que as forças progressistas tomem o poder estatal e usem esse poder para desmantelar as estruturas de poder existentes.
IHU On-Line - Como a história da geografia mundial pode nos ajudar a compreender os rumos do capitalismo e a crise atual?
David Harvey - É muito importante entender o desenvolvimento geográfico desigual do capitalismo e que isso produz um terreno geográfico desigual de possíveis movimentos oposicionistas. Nos Estados Unidos, as condições objetivas e subjetivas para se dedicar à luta anticapitalista são radicalmente diferentes das condições existentes na China ou no Brasil, e um movimento global rumo ao socialismo tem de reconhecer essas diferenças e trabalhar com elas para tentar alcançar seus objetivos.
IHU On-Line - Considerando as questões geográficas e a crise do capital, que economia o senhor vislumbra para o futuro? O fato de o leste asiático poder se transformar numa potência é sinal de alguma mudança estrutural na economia?
David Harvey - Já faz alguns anos que os Estados Unidos vêm perdendo sua posição hegemônica dentro da economia global. Eles perderam sua dominância na manufatura nas décadas de 70 e 80, e agora estão perdendo sua dominância nas finanças, bem como sua influência política e autoridade moral (que estão sendo parcialmente recuperadas agora pela eleição de Obama). A única coisa que restou é o poder militar, e ele é limitado em terra, como vemos no Iraque e no Afeganistão.
O mundo está se tornando muito mais multipolar com a ascensão da China e do Leste da Ásia como centro importante de poder, com a formação da União Europeia. As propostas de formar um banco latino-americano sugerem que essa região também poderá se tornar um poder regional mais consolidado.
IHU On-Line - É possível resgatar o capitalismo dos capitalistas e “de sua falsária ideologia neoliberal”? Em que medida isso pode ser feito pela esquerda?
David Harvey - O neoliberalismo não acabou. Formas secretas dele ainda estão profundamente arraigadas em instituições e estruturas financeiras, e, se o neoliberalismo tem a ver com a consolidação do poder de classe, é bem possível que vejamos uma consolidação ulterior disso até chegarmos a ficar sem as legitimações ideológicas da ciência econômica do livre mercado. É a esta consolidação do poder de classe capitalista que a esquerda tem de se opor resolutamente, até nas ruas, se necessário. Esta é grande batalha que tem de ser travada por todas as facções da esquerda.
IHU On-Line - Economistas de todo o mundo recorreram às teorias de Marx e Keynes para pensar em alternativas à crise. Considerando o atual momento, a esquerda pode fazer mais do que isso, ou seja, propor novas alternativas ao invés de ficar atrelada apenas a essas teorias de salvamento da economia?
David Harvey - Esta é uma questão controvertida, de modo que vou dar minha própria opinião. Sou a favor de se estabilizar o capitalismo através de medidas keynesianas que se transformem em possibilidades marxistas. Sou favorável a isso porque um colapso ulterior do capitalismo sem nenhuma alternativa pronta para tomar seu lugar causará miséria e sofrimento incalculável para a massa da população, incluindo as pessoas que estão no setor informal, enquanto que a classe capitalista escapará relativamente incólume. A classe capitalista consolidará seu poder numa crise e tentará se proteger pela promoção de formas fascistas. A única maneira que consigo conceber de impedir isso é estabilizar o sistema a fim de criar uma ordem política mais forte para a construção da alternativa. Mas sei que muitas pessoas discordarão de mim, e não estou totalmente certo de ter razão.
IHU On-Line - Para o senhor, a esquerda de hoje pretende desaparecer com o capitalismo ou reformulá-lo?
David Harvey - O projeto de longo prazo é criar a alternativa ao capitalismo, e o longo prazo não pode ser muito longo porque esta crise nos mostra que o capitalismo como sistema histórico mundial está próximo de seu fim e suas possibilidades estão perto de serem exauridas. Portanto, temos de passar de modo rápido, mas deliberado, pela reforma para a transformação revolucionária.
IHU On-Line - Diante da crise, muitos especialistas tratam da importância de regular o mercado. Nesse sentido, que função deve ser desempenhada pelo Estado? Que estratégia é primordial nesse momento?
David Harvey - Nossos problemas atuais não serão resolvidos pela regulamentação, absolutamente. Essa não é a questão. O Estado tem um papel crucial a desempenhar no lançamento de um programa de estabilização para o capitalismo, mas, por definição, esse programa de estabilização tem de empoderar os trabalhadores, de modo que, quanto mais empoderados estiverem, tanto mais o Estado se tornará um instrumento em suas mãos que pode ser usado para delinear a transição para o socialismo.
IHU On-Line – O senhor concorda com as medidas adotadas pelos governos mundiais, que estão disponibilizando dinheiro para salvar instituições falidas? Por que não há uma redistribuição de recursos a favor dos setores mais necessitados da sociedade? Quais serão as consequências disso a longo prazo?
David Harvey - A regra áurea neoliberal, desde a década de 70, tem sido salvar as instituições financeiras às expensas do povo, e é exatamente isto que estamos vendo agora. É por isso que eu digo que o neoliberalismo não acabou. Essa preferência por salvar as instituições financeiras e, ao mesmo tempo, ferrar o povo continuará, a menos que haja uma oposição maciça a ela. Se isso continuar, talvez saiamos da crise atual de tal forma que muitos de nós terão perdido seu ganha-pão e seus ativos, e ainda por cima seremos lançados de novo numa crise mais profunda e mais complicada daqui a cinco anos. A frequência e a profundidade das crises financeiras aumentaram nos últimos 30 anos de dominação neoliberal, e isso não deixará de ser assim até que desmantelemos a versão neoliberal do capitalismo e, em última análise, o próprio capitalismo. Mas temos de fazer isso dando um passo de cada vez.
Entrevista: Rogério Haesbaert
Rogério Haesbaert é geógrafo e professor da Universidade Federal Fluminense. A entrevista abaixo está publicada na Revista Eletrônica dos estudantes de Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina em 17 de abril de 2009.
Entrevista com o Professor Rogério Haesbaert
Universidade Federal Fluminense
EXPRESSÕES GEOGRÁFICAS (EG) – Bom dia, professor!
ROGÉRIO HAESBAERT (RH) – Bom dia!
EG - Como foi sua aproximação com a Geografia?
RH - Uma longa história. Na verdade, pensando bem, eu não consigo explicarde onde vem essa minha ligação e a vontade de trabalhar com a Geografia, porque, sem exagero, desde que me conheço por gente acho que posso me considerar um geógrafo. Lembro que com seis anos de idade pedia cadernos como presente de aniversário para encher de mapas e descrições de países. Era, é claro, uma ligação com toda aquela visão muito tradicional de uma geografia descritiva e de memorização. Mas a associação com a representação cartográfica era constante. Lembro também que com sete ou oito anos ganhei meu primeiro Atlas, aquele antigo Atlas do MEC. Foi uma verdadeira descoberta, pois eu morava bem no interior do Rio Grande do Sul, praticamente na área rural, numa cidadezinha – Mata - que se emancipou quando eu tinha sete anos. Acho que a ligação com a Geografia vem um pouco, também, pela minha família e sua tradição migrante. Meu tataravô Haesbaert foi o primeiro pastor protestante na fundação de Nova Hamburgo, em 1824. Meu pai, descendente de portugueses da Campanha gaúcha, e minha mãe, descendente de alemães da “Serra” ou “Colônia”, encontraram-se justamente numa propriedade rizicultora, onde meu pai trabalhava. É interessante, porque foi justamente a cultura do arroz que levou arrendatários da “Colônia” a penetrar nas várzeas da Campanha e promover este cruzamento econômico e cultural. Havia então esse encontro que sintetiza um pouco o cruzamento de geografias que se desenhava naquela época no Rio Grande do Sul, e que eu vivia muito de perto, entre Serra e Campanha. Com dez anos de idade mudamos de Mata no sopé da Serra Geral e de colonização ítalo-germânica minifundiária, para São Vicente do Sul (então General Vargas), um pouco maior, típica cidade de pecuaristas da Campanha gaúcha. Ali comecei a inventar livros, manuscritos, como um almanaque de todos os países do mundo. Acabaram inventando um concurso sobre Geografia na praça da cidade, durante a semana da pátria, do qual participei e onde faziam perguntas não só professores mas até o padre da localidade. Lembro que ganhei uma coleção de enciclopédias e entrada grátis por dois anos no cineminha da cidade. Depois, com onze anos, mudamos para Santa Maria, uma cidade bem maior. Minha mãe conseguiu convencer meu pai a mudar para podermos continuar estudando, pois meus dois irmãos mais velhos já estavam por entrar na Universidade. Mesmo meu pai estando
desempregado, fomos para lá. Em Santa Maria passei a participar de
programas de rádio sobre Geografia. Havia um programa chamado “Música e
Cultura”, com perguntas sobre Geografia a partir dos livros de Aroldo de Azevedo. O prêmio era um valor para gastar numa loja da cidade. Então este forte vínculo com a Geografia vem desde pequeno, não consigo explicar exatamente onde está a fonte de tudo isso. É claro que não tive dúvida quando fui fazer o vestibular, seria para Geografia, embora tivesse também uma certa atração pela área de jornalismo, porque eu também redigia um jornalzinho mimeografado que circulava na quadra em que morávamos. Durante o curso de graduação, como era um curso no interior e bastante tradicional, eu procurei sair para freqüentar cursos e congressos fora. Como comecei a trabalhar como monitor e funcionário da Caixa Econômica – atendendo o Crédito Educativo, que foi criado naquela época – tinha recursos para viajar. Lembro o quanto foi importante para mim a presença no Congresso de Geografia de 1978 em Fortaleza, depois de viagem de 4 dias. Uma mudança radical na minha forma de pensar a Geografia. A presença de Milton Santos que estava chegando e lançava “Por uma outra Geografia”, foi marcante. Nessas participações externas passei a reconhecer o papel fundamental da AGB na minha formação. Um dos contatos que fiz, com a professora Bertha Becker, no Encontro Estadual de Geógrafos do Rio Grande do Sul, em Caxias do Sul, foi decisivo.Numa conversa, ela me propôs que eu fosse para o Rio de Janeiro para fazer o mestrado, mas eu tinha intenção de fazer o mestrado em São Paulo, onde também já havia participado de um outro evento da AGB. O problema era que o sistema de entrada na pós-graduação da USP, mais fechado, exigia conhecimento prévio do professor orientador. Eu até cheguei a conversar com o Prof. Manuel Seabra, que na época discutia a questão regional numa perspectiva marxista, mas como ele não me conhecia, acabei mesmo indo para o Rio de Janeiro. Na UFRJ, apesar de haver prova de Estatística e Matemática (resquícios da Geografia quantitativa, que ali, como em Rio Claro, fora muito forte), o concurso acabava sendo mais democrático. Acabei passando em primeiro lugar e conseguindo bolsa, fundamental para quem mal começara a trabalhar no magistério (era professor na atual UNIFRA, de Santa Maria). Este contato com a Geografia do Rio de Janeiro foi muito importante. E tinha uma turma muito boa, com colegas que debatiam muito, como o Paulo César Gomes. Fui orientado por Bertha e tive o privilégio de ser também aluno e bolsista de Milton Santos, que me convidou para uma pesquisa na favela da Maré (apresentada depois no encontro da AGB de São Paulo, em 1984). Eu sempre idealizara muito o Rio de Janeiro, pela própria geografia, única, da cidade. Eu costumo dizer que o Rio de Janeiro é uma cidade com uma geografia tão incisiva, tão marcante, que ela acaba estimulando muito o imaginário geográfico de qualquer um. A vivência ali representou para mim um verdadeiro embate cultural, também, pois passava do interior do Rio Grande do Sul, de Santa Maria, direto a uma megalópole culturalmente muito distinta. Lembro que o primeiro ano que passei lá foi muito difícil, e daí provavelmente começa a surgir, para mim, na prática, a questão da “desterritorialização”, já evidente nas tantas mudanças que minha família havia feito. Logo depois comecei a dar aula no secundário, pois só com a bolsa não dava para sobreviver. Fazendo concurso aqui, concurso lá, acabei enfim, no ano em que terminei o mestrado, entrando na Universidade Federal Fluminense, onde estou até hoje. Dei aula na PUC, também, um ano antes, com um grupo muito rico, com Ruy Moreira, Carlos Walter, João Rua - pessoas com um espírito crítico que todos conhecem. A partir daí, com a UFF, acabei me estabilizando, digamos assim, pois houve um período em que eu estava completamente tomado de trabalho, dava aula no colégio da Aeronáutica, na ilha do Governador, numa escola secundária em Jacarepaguá, na PUC, em vários pontos da cidade. Já na UFF fiz o Doutorado, a partir de 1990, viajando todas as semanas para São Paulo, onde fui orientado pelo prof. Heinz Dieter Heidemann. Durante esse período, tive o contato com Jacques Lévy, na França, com quem passei um ano no doutorado-sanduíche. Este foi outro momento que destaco como fundamental na minha formação, o contato com a Geografia francesa e européia no sentido mais amplo, especialmente as linhas inovadoras propostas por geógrafos como Jacques Lévy, na Geografia Política,e Augustin Berque, de quem fui aluno, na Geografia Cultural. E para alem do aprendizado a nível intelectual devo destacar sempre o aspecto da vivência, da experiência no seu sentido humano. É importante enfatizar este elo entre a dimensão intelectual e a “vivida”. Acho que é por isso que sempre valorizei tanto o trabalho de campo. Tanto na minha dissertação de mestrado na Campanha Gaúcha quanto na tese de doutorado, principalmente no oeste da Bahia e no sul do Piauí, para mim foram experiências muito ricas não só em termos acadêmicos, mas nas próprias relações que eu construír nesses percursos. Finalmente, passando já dos anos 90 para 2000, terminada a tese de doutorado em 1995, que acabou resultando no livro “Des-territorialização e Identidade”, prossegui ainda com os gaúchos que me acompanham por quase toda a minha trajetória, que começou na Campanha gaúcha, quando eu já indicava a possibilidade de trabalhar com os migrantes sulistas, que resultou depois no trabalho de doutorado. No final dos anos 90 fui para o Paraguai, trabalhar com os “brasiguaios”, na maioria gaúchos que estão do outro lado da fronteira, e com aqueles, também na maioria gaúchos, que estão no Uruguai. Terminei essa pesquisa no início dos anos 2000 e me encaminhei depois para o Pós-doutorado, do qual resultou o trabalho mais teórico que eu desdobrei até aqui, o livro “O Mito da esterritorialização”, cujo embrião está basicamente no meu trabalho de Doutorado – pois apresentei um trabalho com este mesmo título ainda no congresso da AGB em Curitiba, em 1994. No pós-doutorado veio o contato, fundamental, com a Geografia Inglesa, que vai acabar abrindo uma outra porta muito interessante, especialmente através do contato com Doreen Massey, que até hoje permanece muito forte, tendo resultado na recente tradução do livro “Pelo Espaço”.
EG - Como o senhor vê as novas possibilidades de contribuição
epistemológica de outras ciências (humanas e físicas) para com a
geografia e vice-versa?
RH- Eu acho que estamos vivendo hoje um momento muito rico justamente por ter como uma de suas marcas o diálogo interdisciplinar, essa necessidade, mais do que evidente num mundo tão complexo, de um trabalho, eu diria, mesmo, transdisciplinar. Gostaria de começar destacando, sobretudo, como se desenha o hoje, um pouco, o elo da Geografia com outras áreas do conhecimento. Acho que estamos tendo talvez um momento inédito na história da Geografia que é essa possibilidade de dialogar mais com outras áreas, tanto no sentido de buscarmos mais o diálogo com os outros mas de eles, também, virem dialogar conosco, nos chamar ao debate. É um momento muito importante não só aqui no Brasil, mas também lá fora. A experiência que tive com a Geografia inglesa me mostrou muito este aspecto, uma geografia fortalecida e que tem dialogado de uma maneira muito profunda com outras áreas do conhecimento. Isto é perceptível através de alguns conceitos-chave como território e região, que são os dois conceitos que mais têm cruzado a minha trajetória acadêmica. Efetiva-se aí um diálogo tanto com a Economia, quanto com a Ciência Política e a Antropologia. Acho que estas três grandes áreas, pelo menos, têm dialogado muito com a Geografia através desses conceitos, o que tanto enriquece a nossa abordagem quanto a deles próprios. Não podemos esquecer que o próprio “nascimento”, digamos assim, de um conceito como o de território, deve muito às discussões também no campo da própria Biologia. Não se trata, é claro, de uma simples transposição do “comportamento territorial animal” para o comportamento humano, como tentaram fazer alguns autores mais radicais. Mas também não se trata de ignorar o que a Biologia tem a nos dizer nesta questão. Na própria revisão da bibliografia que fiz num capítulo do meu livro “O mito da desterritorialização” verifiquei, para a minha surpresa, que em hipótese alguma poderíamos falar de um “comportamento territorial padrão” para os animais, e se alguma característica deveria passar de um universo para o outro deveria, então, ser justamente a da multiplicidade de comportamentos, pois entre os animais existem desde territorialidades mais estanques e relativamente fechadas até aquelas completamente imprevisíveis e instáveis. Outra área com a qual dialogamos mais, hoje, neste debate sobre território, é a Ciência Política. Eu mesmo tenho participado de debates promovidos pela Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI). Eles buscam o diálogo conosco, pois as concepções “jurídico-estatais” de território também precisam ser reavaliadas. E para nós é muito importante, também, pois às vezes utilizamos concepções demasiado amplas de território, e o “velho” território estatal acaba por ficar um pouco em segundo plano, e a questão do Estado continua como uma questão muito séria, especialmente agora, na gestão da crise financeira global em que estamos mergulhados. Com relação a outra área, a Antropologia – e, por extensão, com os chamados Estudos Culturais (que abrangem a própria área de Estudos Literários) vivenciei bastante este diálogo interdisciplinar durante minha estada na Open University. Os debates, freqüentes, por exemplo, entre Doreen Massey e Stuart Hall, este grande estudioso da área de Estudos Culturais. Os chamados estudos pós-coloniais, que nasceram principalmente aí, têm hoje uma grande influência na ciências sociais latino-americanas, e uma entrada já visível na geografia brasileira, valorizando os contextos geo-históricos de produção do conhecimento. O entendimento da territorialidade dos chamados “povos tradicionais”, hoje, no Brasil, com inúmeros trabalhos já realizados por geógrafos, é uma mostra deste diálogo, e vem se somar à já tão intensa – e rica – pesquisa na área dos chamados grupos subalternos, que numa leitura mais estritamente marxista fica direcionado para grupos como o dos agricultores sem-terra. Outra vertente de trabalhos interdisciplinares vai além das contribuições epistemológicas e se dá também num universo mais prático, de intervenção e/ou assessoria a movimentos sociais, como os próprios sem-terra, os sem-teto, grupos culturais minoritários, etc. Isto é extremamente relevante e pode estar demonstrando que avançamos, um pouco mais, no sentido de superar velhas dicotomias – não só entre natureza e sociedade mas também entre teoria e prática.
EG - Há tempos que existe um discurso sobre a “primazia da prática” permeado nas discussões epistemológicas da Geografia. Tanto alguns representantes de Geografias Críticas como outros de Geografias Positivistas, comentam sobre a finalidade prática desta ciência. As interpretações de tal discurso são múltiplas. Como o senhor vê hoje a apropriação que se faz deste discurso principalmente nas universidades brasileiras? E como o senhor entende a afirmação sobre a primazia da prática na atividade dos geógrafos?
RH - Sou bastante cético, confesso, com relação a esse excessivo utilitarismo
da Geografia, pois temos que manter um papel eminentemente crítico – mas de
uma crítica eficaz, comprometida com a transformação efetiva, política, e os exemplos que dei no final do comentário anterior seriam uma prova disso: manter o espírito crítico mas sem abrir mão da atuação concreta, política, de intervir, ainda que a nível do discurso, na transformação da sociedade. Isto significa que sou extremamente crítico, também, em relação à separação rígida entre um corpus teórico acadêmico e a dimensão das práticas sociais. E aí, eu diria, sobretudo da prática política, porque eu não vejo prática como uma mera instrumentalização do conhecimento, como muitos “geógrafos tecnicistas” defendem, mas uma aplicação politicamente engajada e a serviço daqueles que realmente estão sofrendo as piores conseqüências dos processos econômicos, políticos e culturais dominantes. Desta forma, este compromisso político da Geografia tem que ser a todo tempo reenfatizado, mostrando que o principal e mais relevante “alinhavo” entre teoria e prática se dá através do reconhecimento das implicações políticas dos nossos discursos. Penso que a nossa formação teórica tem caminhado numa visão mais múltipla das nossas leituras de mundo e isto, por um lado, quando não sobrevaloriza as “diferenças”, o “cada um na sua”, mas promove o debate conseqüente, produtivo, capaz de deixar em aberto o reavaliar de nossas certezas, deve ser visto como muito positivo. O fato de não haver hegemonia clara de uma única grande corrente de pensamento, hoje, como na época de domínio do pensamento estruturalista, não deve ser visto como sinal de fraqueza. De certa forma faz parte do reconhecimento de que, assim como o poder não está simplesmente nas mãos de uma classe bem determinada, a resistência, que é o outro lado, imanente, do poder, também pode brotar de várias fontes e se manifestar de diversas formas. Assim como a tirania do “pensamento único” está em xeque, também o “unicismo tecnicista” entrou em crise, e as saídas no sentido prático também têm múltiplas faces, adaptáveis, inclusive, até mesmo à própria diversidade do meio físico-natural em que estão situadas. Esta é uma grande contribuição explicitada também pelo chamado pensamento pós-colonial (mas não só por ele). No diálogo com companheiros de Departamento da UFF, em especial Carlos Walter Porto-Gonçalves – ademais um grande amigo, temos desdobrado um pouco este debate. Os chamados novos movimentos sociais hoje, especialmente no contexto latino-americano – e a América Latina acabou se tornando um verdadeiro laboratório na gestão de novas experiências sócio-políticas no mundo – revelam toda a riqueza desta superação entre teoria e prática. São movimentos que, ao se envolverem com “nossos” conceitos, como território e territorialidade, os refazem, os reconstroem, moldados pelas experiências concretas de suas lutas políticas. Isto é muito saudável, uma demonstração muito evidente de como refazer a teoria pela prática. Neste sentido, a trajetória acadêmica – e ao mesmo tempo política – de Doreen Massey é um outro ótimo exemplo. Até o seu conceito de “geometrias de poder” (da compressão espaço-tempo) está sendo utilizado, hoje, em algumas propostas do governo venezuelano. É claro que não se trata de um processo simples, ele é eivado de contradições, de idas-e-vindas. Mas o simples fato dessa “experimentação” política existir já é um grande mérito. Não podemos, entretanto, abrir mão de nossa autonomia como intelectuais que, antes de mais nada, pensam, refletem e, por este intermédio, tentam não só interpretar mas também influir para um novo curso das coisas. A propósito, as recentes mudanças político-sociais na América Latina demonstram que está havendo uma abertura – ainda que muitas vezes de forma tênue e ambivalente – para a inserção dos intelectuais (orgânicos?) na construção de novas políticas de gestão. Eu próprio fui convidado, alguns anos atrás, para uma discussão conceitual ligada à nova política do ordenamento territorial do governo, acho até que foi uma iniciativa inédita, de chamar a academia para discutir em Brasília, no Ministério de Integração Nacional. Participaram vários geógrafos, como Bertha Becker, Antônio Carlos Robert Moraes e Wanderlei Messias da Costa. Eu notei ali a preocupação do governo de fazer esse elo com a academia e, para nós, também foi uma oportunidade inédita de tentar colocar em prática aquilo que discutimos, às vezes de uma maneira mais estritamente teórica. Eu acho muito importante esta abertura de caminhos para um elo mais efetivo entre a chamada academia e a ação política. Falo sempre em “política” enquanto dimensão da prática. Não tem muito a ver com a visão tecnicista que critiquei inicialmente, que dissocia nossas práticas de nosso engajamento e de nossa responsabilidade política. E formular conceitos continua fundamental. É lamentável, por exemplo, quando vemos muitos estudantes defendendo apenas disciplinas técnico-instrumentais em reformas de currículo. Fascinados pela parafernália tecnológica ao nosso redor, esquecemos da reflexão crítica e da reformulação teórica sobre a dinâmica das coisas. Isto é profundamente empobrecedor. Por outro lado, no sentido inverso, também não é possível imaginar que se pode desconhecer todo este avanço técnico, especialmente no sentido da representação e interpretação cartográfica. Às vezes por não conhecermos estas novas tecnologias perdemos muito da riqueza que elas proporcionam em termos de reorganização e reapresentação de nossa empiria. Ou seja, deve ser sempre uma via de mão dupla, do contrário não leva a lugar nenhum – nem o teoricismo ou a crítica abstrata, nem o velho empiricismo e/ou tecnicismo que confia de tal forma nos “dados” e/ou na “técnica” que esquece de refletir, de conceituar e, assim, de argumentar criticamente, reformulando constantemente concepções teóricas, formas de pensamento.
EG - Como o senhor vê o futuro das universidades brasileiras e mesmo do ensino básico diante da conjuntura atual? A precarização do trabalho é um fenômeno evidente em marcha diante das estratégias capitalistas para sua auto-reprodução. Como o senhor encara tal processo no tocante a prática dos docentes no Brasil?
RH – Complexa essa questão. Não me considero muito competente para
opinar sobre tema tão vasto como “o futuro das universidades brasileiras”, mas vou dar uma opinião mais rápida, a partir da vivência do meu próprio cotidiano universitário. Passamos por um momento de transição muito sério. O diferencial que caracterizava um ensino público superior de relativa qualidade e um corpo de professores com tempo para pesquisa e dedicação exclusiva, por exemplo, parece que está sendo colocado em xeque. A massificação do ensino, que por um lado poderia ser positiva, ao representar um maior acesso à Universidade por parte daqueles que até aqui pouco usufruíram dela, não pode ser feita às custas da qualidade. De “escolões” nós estamos cheios, principalmente no ensino superior privado, em que os professores são explorados por todo lado, com carga horária excessiva (reproduzindo o que há muito acontece no ensino médio), sem o menor tempo para se qualificar e fazer pesquisa. A quantidade de professores substitutos em muitas universidades públicas, muito mal pagos, sinônimo da precarização do trabalho a que vocês aludem, é reflexo da forma precipitada com que algumas mudanças estão sendo feitas. Outro dilema é o produtivismo – cobrar maior engajamento e produção é saudável, mas contabilizar tudo, transformar tudo em número, quantificar ao invés de qualificar os pesquisadores, os cursos, as pós-graduações. Isto é muito polêmico. Outra questão muito complicada é do elo público-privado e o papel das fundações universitárias nas políticas financeiras e de “autonomia” das Universidades. Muitos centros de pesquisa e laboratórios ficam de tal forma dependentes de recursos privados que seu atrelamento a interesses empresariais faz com que percam o próprio sentido de autonomia da pesquisa universitária. Outro dilema que se coloca para o que vocês estão chamando de “o futuro das universidades brasileiras” é a dissociação entre a Universidade e a sociedade, e neste sentido acho que há pelo menos algumas iniciativas positivas, inclusive na Geografia, que devem ser mais estimuladas, principalmente no que tange à assessoria a grupos “excluídos” ou subalternos, como fazem geógrafos como Bernardo Mançano em relação aos sem-terra, Marcelo de Souza em relação aos sem-teto e vários outros em relação a grupos como indígenas, quilombolas, etc. Sem falar na atuação, crescente, penso, junto a grupos de governos progressistas no que se refere a movimentos como os do orçamento participativo ou do planejamento urbano
renovado em sentido mais amplo.
EG - Em seu livro “Territórios Alternativos” (2006), o senhor propõe interessantes aproximações entre a Geografia e as Artes. Gostaríamos que o senhor comentasse a tríade Arte – Técnica – Geografia. E também como que o senhor vê as proposições poéticas nas pesquisas em Geografia. Estaria a Geografia brasileira contemporânea realmente aberta a essas aproximações?
RH - Vocês tomaram aí um texto específico do livro "Territórios Alternativos" cuja abordagem eu acabei não aprofundando, mas que é um texto de que eu gosto muito. Ele se originou de um encontro que houve na UFF, no início dos anos 90, justamente sobre ciência e arte. Este vínculo é difícil de ser construído, mas é um caminho que alguns geógrafos hoje estão trilhando, estão buscando trilhar, e que para muitos marca um pouco o que será denominado, de forma excessivamente genérica, de pós-modernidade, esse movimento que é também um movimento de maior abertura em relação à dimensão da sensibilidade e da subjetividade humanas, rompendo com o racionalismo e o estruturalismo que imperava antes. Eu lamento não ter desdobrado mais essa perspectiva, talvez até no futuro seja um campo que eu vá desdobrar e aprofundar. Nesse caso o que me despertou para esta temática foi o próprio trabalho do doutorado no oeste da Bahia, quando eu percebi as diversas formas de indignação da população local com a presença “gaúcha”, inclusive pela linguagem poética. Uma das pessoas mais intereressantes que contatei, e com quem acabei fazendo amizade, uma gaúcha, também utilizava a arte, mas para tentar romper esta barreira social entre os dois grupos, nordestinos e sulistas. Ela, mesmo sob a crítica de muitos “gaúchos”, passou a resgatar e a estimular a manifestação da cultura local. Passei a perceber que através da análise das identidades territoriais este elo entre ciência e arte é bastante visível, e mesmo necessário ser abordado. A cultura, a arte, é hoje, e dependendo do contexto, um grande instrumento político. Claro que a arte não deve ser apenas “instrumentalizada” politicamente, ela é antes de tudo o campo da criação, da ousadia, da imaginação, da liberdade, do fundamentalmente novo – mas, como tal, não pode deixar de ser sempre, de alguma forma, também, política. Naquele texto a que vocês se referem eu trabalhei com a música gaúcha e suas várias vertentes ou implicações políticas, desde aquela que não tem nenhum compromisso explícito com a denúncia ou o engajamento político, até aquelas que são claramente um instrumento de denúncia e contestação. No fundo, ela carrega sempre uma grande ambivalência, entre o conservar de uma cultura regional e a ruptura para novas formas, inclusive mais universais, de pensar o regional. Desde aquelas letras, que eu reproduzo no texto, extremamente conservadoras, de um gauchismo mais fechado e defensor do latifúndio, do status quo, até aquelas que se contrapõem radicalmente a essa visão conservadora e que cantam, por exemplo, a reforma agrária, a reconfiguração deste ambiente que é justamente o símbolo maior da identidade gaucha, o latifúndio, a estância pastoril. Se nós estamos aqui no Rio Grande do Sul e nos identificamos com esta terra, eles vão dizer, por que não partilhar esse mesmo espaço que de certa forma foi colocado como nosso símbolo maior? Na própria migração gaúcha pelo Brasil afora, onde se reproduz também essa tremenda desigualdade, é interessante reconhecer estas várias vertentes do regionalismo gaúcho. Ao mesmo tempo em que se engajam na fundação de novos Centros de Tradições Gaúchas e se aliam às antigas elites locais, por exemplo, também fundam células de partidos de esquerda e promovem um “gauchismo” muito mais aberto, capaz inclusive de dialogar e valorizar, também, as culturas locais. Voltando ao elo entre cultura – ou, num sentido mais estrito, arte – e política, devemos destacar novamente que toda cultura é “cultura política”, está de alguma forma imersa em relações de poder. Isto fica muito claro quando nos referimos às identidades. A própria construção e manifestação de uma identidade é sempre uma estratégia que está em jogo, uma estratégia de poder, ela é acionada enquanto uma estratégia para o grupo alcançar algum objetivo. Por exemplo, as manifestações culturais dos chamados povos tradicionais, hoje, no Brasil, eles no fundo recorrem a uma identidade como uma estratégia, não querendo com isso dizer que eles têm simplesmente uma visão que alguns autores chamam de (re)essencializadora da identidade. Outro termo mais adequado seria o de essencialização estratégica, que revela que este relativo fechamento identitário, em alguns momentos, ocorre em função de estratégias políticas, como a conquista definitiva de uma reserva, de suas terras. Trata-se de um momento estratégico para conquistas políticas que serão realizadas, para em um outro momento novamente o grupo se abrir, dialogar, se hibridizar, até, quem sabe, com outras culturas. Em relação ao sulista ou, como ele é conhecido genericamente quando migra, “gaúcho”, aí é um leque muito grande de diferentes posições que se desenham, desde aqueles que se fecham e se segregam, criando até ambientes como “bairros gaúchos” – com uma classe média, uma elite local bastante fechada - até aqueles que, por força até das próprias circunstâncias econômicas, muitas vezes, se relacionam de uma maneira muito mais aberta e culturalmente integrada, reavaliando e recriando sua própria cultura e identidade pela mescla com os valores e a cultura do outro. Porque no fundo qualquer identidade, a própria identidade gaucha nasce do hibridismo, de uma mistura. São elementos indígenas, espanhóis, portugueses/açorianos... que se misturaram em determinado momento da história e que deram origem a esta cultura que nos parece, hoje, aparentemente, tão homogênea, coesa. Mas ela foi construída na sua origem desse amálgama cultural de manifestações múltiplas, o que coloca sempre a possibilidade de você também se (re)hibridizar no contanto com o outro. Então é um viés que a Geografia tem que explorar mais. Hoje há vários caminhos nesse sentido dentro da chamada Geografia Cultural – que eu prefiro chamar de abordagem cultural na Geografia, pois, no fundo, em sentido amplo, e para ser mais justo com a conceituação antropológica de cultura, toda Geografia é Geografia cultural. Neste sentido, não podemos simplificar e trabalhar em Geografia cultural apenas com temas menores ou que simplesmente não encontraram guarida em outras perspectivas, aquilo que alguns, de um modo extremamente crítico, irão pejorativamente chamar de “perfumaria”. É justamente quando não ignoramos a natureza política da cultura e trabalhamos o elo ciência-arte, ou seja, enfatizando aquilo que a criatividade e o imaginário têm a contribuir para um pensamento “científico”, é que superamos esta leitura simplista da cultura em Geografia. Eu acho que este é um dos campos em que a Geografia mais tem avançado no Brasil, e onde tem, no futuro, um de seus mais amplos campos de exploração: Geografia e Literatura, Geografia e Cinema ou, num sentido mais amplo, Geografia e Representação, Geografia e Símbolos, Geografia e Identidade.. Aí é a nossa própria concepção de espaço que se amplia, não ficando restrito à visão funcional-materialista que dominou durante um certo tempo. Reconheço que há um enorme campo a explorar que se centraliza mais no campo do simbólico e das representações. Ainda que eu, como costumo dizer, tenda sempre a manter “um pé no chão”, trabalhando sempre na interseção entre materialidade e idealidade, mundo material e mundo simbólico, pois não consigo definir o espaço geográfico se não no sentido relacional que não só vê a indissociabilidade entre as dimensões material e ideal, como reconhece as relações sociais como sendo constituídas por essa espacialidade, só se efetivando através dela, com ela, dentro dela.
Entrevista com o Professor Rogério Haesbaert
Universidade Federal Fluminense
EXPRESSÕES GEOGRÁFICAS (EG) – Bom dia, professor!
ROGÉRIO HAESBAERT (RH) – Bom dia!
EG - Como foi sua aproximação com a Geografia?
RH - Uma longa história. Na verdade, pensando bem, eu não consigo explicarde onde vem essa minha ligação e a vontade de trabalhar com a Geografia, porque, sem exagero, desde que me conheço por gente acho que posso me considerar um geógrafo. Lembro que com seis anos de idade pedia cadernos como presente de aniversário para encher de mapas e descrições de países. Era, é claro, uma ligação com toda aquela visão muito tradicional de uma geografia descritiva e de memorização. Mas a associação com a representação cartográfica era constante. Lembro também que com sete ou oito anos ganhei meu primeiro Atlas, aquele antigo Atlas do MEC. Foi uma verdadeira descoberta, pois eu morava bem no interior do Rio Grande do Sul, praticamente na área rural, numa cidadezinha – Mata - que se emancipou quando eu tinha sete anos. Acho que a ligação com a Geografia vem um pouco, também, pela minha família e sua tradição migrante. Meu tataravô Haesbaert foi o primeiro pastor protestante na fundação de Nova Hamburgo, em 1824. Meu pai, descendente de portugueses da Campanha gaúcha, e minha mãe, descendente de alemães da “Serra” ou “Colônia”, encontraram-se justamente numa propriedade rizicultora, onde meu pai trabalhava. É interessante, porque foi justamente a cultura do arroz que levou arrendatários da “Colônia” a penetrar nas várzeas da Campanha e promover este cruzamento econômico e cultural. Havia então esse encontro que sintetiza um pouco o cruzamento de geografias que se desenhava naquela época no Rio Grande do Sul, e que eu vivia muito de perto, entre Serra e Campanha. Com dez anos de idade mudamos de Mata no sopé da Serra Geral e de colonização ítalo-germânica minifundiária, para São Vicente do Sul (então General Vargas), um pouco maior, típica cidade de pecuaristas da Campanha gaúcha. Ali comecei a inventar livros, manuscritos, como um almanaque de todos os países do mundo. Acabaram inventando um concurso sobre Geografia na praça da cidade, durante a semana da pátria, do qual participei e onde faziam perguntas não só professores mas até o padre da localidade. Lembro que ganhei uma coleção de enciclopédias e entrada grátis por dois anos no cineminha da cidade. Depois, com onze anos, mudamos para Santa Maria, uma cidade bem maior. Minha mãe conseguiu convencer meu pai a mudar para podermos continuar estudando, pois meus dois irmãos mais velhos já estavam por entrar na Universidade. Mesmo meu pai estando
desempregado, fomos para lá. Em Santa Maria passei a participar de
programas de rádio sobre Geografia. Havia um programa chamado “Música e
Cultura”, com perguntas sobre Geografia a partir dos livros de Aroldo de Azevedo. O prêmio era um valor para gastar numa loja da cidade. Então este forte vínculo com a Geografia vem desde pequeno, não consigo explicar exatamente onde está a fonte de tudo isso. É claro que não tive dúvida quando fui fazer o vestibular, seria para Geografia, embora tivesse também uma certa atração pela área de jornalismo, porque eu também redigia um jornalzinho mimeografado que circulava na quadra em que morávamos. Durante o curso de graduação, como era um curso no interior e bastante tradicional, eu procurei sair para freqüentar cursos e congressos fora. Como comecei a trabalhar como monitor e funcionário da Caixa Econômica – atendendo o Crédito Educativo, que foi criado naquela época – tinha recursos para viajar. Lembro o quanto foi importante para mim a presença no Congresso de Geografia de 1978 em Fortaleza, depois de viagem de 4 dias. Uma mudança radical na minha forma de pensar a Geografia. A presença de Milton Santos que estava chegando e lançava “Por uma outra Geografia”, foi marcante. Nessas participações externas passei a reconhecer o papel fundamental da AGB na minha formação. Um dos contatos que fiz, com a professora Bertha Becker, no Encontro Estadual de Geógrafos do Rio Grande do Sul, em Caxias do Sul, foi decisivo.Numa conversa, ela me propôs que eu fosse para o Rio de Janeiro para fazer o mestrado, mas eu tinha intenção de fazer o mestrado em São Paulo, onde também já havia participado de um outro evento da AGB. O problema era que o sistema de entrada na pós-graduação da USP, mais fechado, exigia conhecimento prévio do professor orientador. Eu até cheguei a conversar com o Prof. Manuel Seabra, que na época discutia a questão regional numa perspectiva marxista, mas como ele não me conhecia, acabei mesmo indo para o Rio de Janeiro. Na UFRJ, apesar de haver prova de Estatística e Matemática (resquícios da Geografia quantitativa, que ali, como em Rio Claro, fora muito forte), o concurso acabava sendo mais democrático. Acabei passando em primeiro lugar e conseguindo bolsa, fundamental para quem mal começara a trabalhar no magistério (era professor na atual UNIFRA, de Santa Maria). Este contato com a Geografia do Rio de Janeiro foi muito importante. E tinha uma turma muito boa, com colegas que debatiam muito, como o Paulo César Gomes. Fui orientado por Bertha e tive o privilégio de ser também aluno e bolsista de Milton Santos, que me convidou para uma pesquisa na favela da Maré (apresentada depois no encontro da AGB de São Paulo, em 1984). Eu sempre idealizara muito o Rio de Janeiro, pela própria geografia, única, da cidade. Eu costumo dizer que o Rio de Janeiro é uma cidade com uma geografia tão incisiva, tão marcante, que ela acaba estimulando muito o imaginário geográfico de qualquer um. A vivência ali representou para mim um verdadeiro embate cultural, também, pois passava do interior do Rio Grande do Sul, de Santa Maria, direto a uma megalópole culturalmente muito distinta. Lembro que o primeiro ano que passei lá foi muito difícil, e daí provavelmente começa a surgir, para mim, na prática, a questão da “desterritorialização”, já evidente nas tantas mudanças que minha família havia feito. Logo depois comecei a dar aula no secundário, pois só com a bolsa não dava para sobreviver. Fazendo concurso aqui, concurso lá, acabei enfim, no ano em que terminei o mestrado, entrando na Universidade Federal Fluminense, onde estou até hoje. Dei aula na PUC, também, um ano antes, com um grupo muito rico, com Ruy Moreira, Carlos Walter, João Rua - pessoas com um espírito crítico que todos conhecem. A partir daí, com a UFF, acabei me estabilizando, digamos assim, pois houve um período em que eu estava completamente tomado de trabalho, dava aula no colégio da Aeronáutica, na ilha do Governador, numa escola secundária em Jacarepaguá, na PUC, em vários pontos da cidade. Já na UFF fiz o Doutorado, a partir de 1990, viajando todas as semanas para São Paulo, onde fui orientado pelo prof. Heinz Dieter Heidemann. Durante esse período, tive o contato com Jacques Lévy, na França, com quem passei um ano no doutorado-sanduíche. Este foi outro momento que destaco como fundamental na minha formação, o contato com a Geografia francesa e européia no sentido mais amplo, especialmente as linhas inovadoras propostas por geógrafos como Jacques Lévy, na Geografia Política,e Augustin Berque, de quem fui aluno, na Geografia Cultural. E para alem do aprendizado a nível intelectual devo destacar sempre o aspecto da vivência, da experiência no seu sentido humano. É importante enfatizar este elo entre a dimensão intelectual e a “vivida”. Acho que é por isso que sempre valorizei tanto o trabalho de campo. Tanto na minha dissertação de mestrado na Campanha Gaúcha quanto na tese de doutorado, principalmente no oeste da Bahia e no sul do Piauí, para mim foram experiências muito ricas não só em termos acadêmicos, mas nas próprias relações que eu construír nesses percursos. Finalmente, passando já dos anos 90 para 2000, terminada a tese de doutorado em 1995, que acabou resultando no livro “Des-territorialização e Identidade”, prossegui ainda com os gaúchos que me acompanham por quase toda a minha trajetória, que começou na Campanha gaúcha, quando eu já indicava a possibilidade de trabalhar com os migrantes sulistas, que resultou depois no trabalho de doutorado. No final dos anos 90 fui para o Paraguai, trabalhar com os “brasiguaios”, na maioria gaúchos que estão do outro lado da fronteira, e com aqueles, também na maioria gaúchos, que estão no Uruguai. Terminei essa pesquisa no início dos anos 2000 e me encaminhei depois para o Pós-doutorado, do qual resultou o trabalho mais teórico que eu desdobrei até aqui, o livro “O Mito da esterritorialização”, cujo embrião está basicamente no meu trabalho de Doutorado – pois apresentei um trabalho com este mesmo título ainda no congresso da AGB em Curitiba, em 1994. No pós-doutorado veio o contato, fundamental, com a Geografia Inglesa, que vai acabar abrindo uma outra porta muito interessante, especialmente através do contato com Doreen Massey, que até hoje permanece muito forte, tendo resultado na recente tradução do livro “Pelo Espaço”.
EG - Como o senhor vê as novas possibilidades de contribuição
epistemológica de outras ciências (humanas e físicas) para com a
geografia e vice-versa?
RH- Eu acho que estamos vivendo hoje um momento muito rico justamente por ter como uma de suas marcas o diálogo interdisciplinar, essa necessidade, mais do que evidente num mundo tão complexo, de um trabalho, eu diria, mesmo, transdisciplinar. Gostaria de começar destacando, sobretudo, como se desenha o hoje, um pouco, o elo da Geografia com outras áreas do conhecimento. Acho que estamos tendo talvez um momento inédito na história da Geografia que é essa possibilidade de dialogar mais com outras áreas, tanto no sentido de buscarmos mais o diálogo com os outros mas de eles, também, virem dialogar conosco, nos chamar ao debate. É um momento muito importante não só aqui no Brasil, mas também lá fora. A experiência que tive com a Geografia inglesa me mostrou muito este aspecto, uma geografia fortalecida e que tem dialogado de uma maneira muito profunda com outras áreas do conhecimento. Isto é perceptível através de alguns conceitos-chave como território e região, que são os dois conceitos que mais têm cruzado a minha trajetória acadêmica. Efetiva-se aí um diálogo tanto com a Economia, quanto com a Ciência Política e a Antropologia. Acho que estas três grandes áreas, pelo menos, têm dialogado muito com a Geografia através desses conceitos, o que tanto enriquece a nossa abordagem quanto a deles próprios. Não podemos esquecer que o próprio “nascimento”, digamos assim, de um conceito como o de território, deve muito às discussões também no campo da própria Biologia. Não se trata, é claro, de uma simples transposição do “comportamento territorial animal” para o comportamento humano, como tentaram fazer alguns autores mais radicais. Mas também não se trata de ignorar o que a Biologia tem a nos dizer nesta questão. Na própria revisão da bibliografia que fiz num capítulo do meu livro “O mito da desterritorialização” verifiquei, para a minha surpresa, que em hipótese alguma poderíamos falar de um “comportamento territorial padrão” para os animais, e se alguma característica deveria passar de um universo para o outro deveria, então, ser justamente a da multiplicidade de comportamentos, pois entre os animais existem desde territorialidades mais estanques e relativamente fechadas até aquelas completamente imprevisíveis e instáveis. Outra área com a qual dialogamos mais, hoje, neste debate sobre território, é a Ciência Política. Eu mesmo tenho participado de debates promovidos pela Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI). Eles buscam o diálogo conosco, pois as concepções “jurídico-estatais” de território também precisam ser reavaliadas. E para nós é muito importante, também, pois às vezes utilizamos concepções demasiado amplas de território, e o “velho” território estatal acaba por ficar um pouco em segundo plano, e a questão do Estado continua como uma questão muito séria, especialmente agora, na gestão da crise financeira global em que estamos mergulhados. Com relação a outra área, a Antropologia – e, por extensão, com os chamados Estudos Culturais (que abrangem a própria área de Estudos Literários) vivenciei bastante este diálogo interdisciplinar durante minha estada na Open University. Os debates, freqüentes, por exemplo, entre Doreen Massey e Stuart Hall, este grande estudioso da área de Estudos Culturais. Os chamados estudos pós-coloniais, que nasceram principalmente aí, têm hoje uma grande influência na ciências sociais latino-americanas, e uma entrada já visível na geografia brasileira, valorizando os contextos geo-históricos de produção do conhecimento. O entendimento da territorialidade dos chamados “povos tradicionais”, hoje, no Brasil, com inúmeros trabalhos já realizados por geógrafos, é uma mostra deste diálogo, e vem se somar à já tão intensa – e rica – pesquisa na área dos chamados grupos subalternos, que numa leitura mais estritamente marxista fica direcionado para grupos como o dos agricultores sem-terra. Outra vertente de trabalhos interdisciplinares vai além das contribuições epistemológicas e se dá também num universo mais prático, de intervenção e/ou assessoria a movimentos sociais, como os próprios sem-terra, os sem-teto, grupos culturais minoritários, etc. Isto é extremamente relevante e pode estar demonstrando que avançamos, um pouco mais, no sentido de superar velhas dicotomias – não só entre natureza e sociedade mas também entre teoria e prática.
EG - Há tempos que existe um discurso sobre a “primazia da prática” permeado nas discussões epistemológicas da Geografia. Tanto alguns representantes de Geografias Críticas como outros de Geografias Positivistas, comentam sobre a finalidade prática desta ciência. As interpretações de tal discurso são múltiplas. Como o senhor vê hoje a apropriação que se faz deste discurso principalmente nas universidades brasileiras? E como o senhor entende a afirmação sobre a primazia da prática na atividade dos geógrafos?
RH - Sou bastante cético, confesso, com relação a esse excessivo utilitarismo
da Geografia, pois temos que manter um papel eminentemente crítico – mas de
uma crítica eficaz, comprometida com a transformação efetiva, política, e os exemplos que dei no final do comentário anterior seriam uma prova disso: manter o espírito crítico mas sem abrir mão da atuação concreta, política, de intervir, ainda que a nível do discurso, na transformação da sociedade. Isto significa que sou extremamente crítico, também, em relação à separação rígida entre um corpus teórico acadêmico e a dimensão das práticas sociais. E aí, eu diria, sobretudo da prática política, porque eu não vejo prática como uma mera instrumentalização do conhecimento, como muitos “geógrafos tecnicistas” defendem, mas uma aplicação politicamente engajada e a serviço daqueles que realmente estão sofrendo as piores conseqüências dos processos econômicos, políticos e culturais dominantes. Desta forma, este compromisso político da Geografia tem que ser a todo tempo reenfatizado, mostrando que o principal e mais relevante “alinhavo” entre teoria e prática se dá através do reconhecimento das implicações políticas dos nossos discursos. Penso que a nossa formação teórica tem caminhado numa visão mais múltipla das nossas leituras de mundo e isto, por um lado, quando não sobrevaloriza as “diferenças”, o “cada um na sua”, mas promove o debate conseqüente, produtivo, capaz de deixar em aberto o reavaliar de nossas certezas, deve ser visto como muito positivo. O fato de não haver hegemonia clara de uma única grande corrente de pensamento, hoje, como na época de domínio do pensamento estruturalista, não deve ser visto como sinal de fraqueza. De certa forma faz parte do reconhecimento de que, assim como o poder não está simplesmente nas mãos de uma classe bem determinada, a resistência, que é o outro lado, imanente, do poder, também pode brotar de várias fontes e se manifestar de diversas formas. Assim como a tirania do “pensamento único” está em xeque, também o “unicismo tecnicista” entrou em crise, e as saídas no sentido prático também têm múltiplas faces, adaptáveis, inclusive, até mesmo à própria diversidade do meio físico-natural em que estão situadas. Esta é uma grande contribuição explicitada também pelo chamado pensamento pós-colonial (mas não só por ele). No diálogo com companheiros de Departamento da UFF, em especial Carlos Walter Porto-Gonçalves – ademais um grande amigo, temos desdobrado um pouco este debate. Os chamados novos movimentos sociais hoje, especialmente no contexto latino-americano – e a América Latina acabou se tornando um verdadeiro laboratório na gestão de novas experiências sócio-políticas no mundo – revelam toda a riqueza desta superação entre teoria e prática. São movimentos que, ao se envolverem com “nossos” conceitos, como território e territorialidade, os refazem, os reconstroem, moldados pelas experiências concretas de suas lutas políticas. Isto é muito saudável, uma demonstração muito evidente de como refazer a teoria pela prática. Neste sentido, a trajetória acadêmica – e ao mesmo tempo política – de Doreen Massey é um outro ótimo exemplo. Até o seu conceito de “geometrias de poder” (da compressão espaço-tempo) está sendo utilizado, hoje, em algumas propostas do governo venezuelano. É claro que não se trata de um processo simples, ele é eivado de contradições, de idas-e-vindas. Mas o simples fato dessa “experimentação” política existir já é um grande mérito. Não podemos, entretanto, abrir mão de nossa autonomia como intelectuais que, antes de mais nada, pensam, refletem e, por este intermédio, tentam não só interpretar mas também influir para um novo curso das coisas. A propósito, as recentes mudanças político-sociais na América Latina demonstram que está havendo uma abertura – ainda que muitas vezes de forma tênue e ambivalente – para a inserção dos intelectuais (orgânicos?) na construção de novas políticas de gestão. Eu próprio fui convidado, alguns anos atrás, para uma discussão conceitual ligada à nova política do ordenamento territorial do governo, acho até que foi uma iniciativa inédita, de chamar a academia para discutir em Brasília, no Ministério de Integração Nacional. Participaram vários geógrafos, como Bertha Becker, Antônio Carlos Robert Moraes e Wanderlei Messias da Costa. Eu notei ali a preocupação do governo de fazer esse elo com a academia e, para nós, também foi uma oportunidade inédita de tentar colocar em prática aquilo que discutimos, às vezes de uma maneira mais estritamente teórica. Eu acho muito importante esta abertura de caminhos para um elo mais efetivo entre a chamada academia e a ação política. Falo sempre em “política” enquanto dimensão da prática. Não tem muito a ver com a visão tecnicista que critiquei inicialmente, que dissocia nossas práticas de nosso engajamento e de nossa responsabilidade política. E formular conceitos continua fundamental. É lamentável, por exemplo, quando vemos muitos estudantes defendendo apenas disciplinas técnico-instrumentais em reformas de currículo. Fascinados pela parafernália tecnológica ao nosso redor, esquecemos da reflexão crítica e da reformulação teórica sobre a dinâmica das coisas. Isto é profundamente empobrecedor. Por outro lado, no sentido inverso, também não é possível imaginar que se pode desconhecer todo este avanço técnico, especialmente no sentido da representação e interpretação cartográfica. Às vezes por não conhecermos estas novas tecnologias perdemos muito da riqueza que elas proporcionam em termos de reorganização e reapresentação de nossa empiria. Ou seja, deve ser sempre uma via de mão dupla, do contrário não leva a lugar nenhum – nem o teoricismo ou a crítica abstrata, nem o velho empiricismo e/ou tecnicismo que confia de tal forma nos “dados” e/ou na “técnica” que esquece de refletir, de conceituar e, assim, de argumentar criticamente, reformulando constantemente concepções teóricas, formas de pensamento.
EG - Como o senhor vê o futuro das universidades brasileiras e mesmo do ensino básico diante da conjuntura atual? A precarização do trabalho é um fenômeno evidente em marcha diante das estratégias capitalistas para sua auto-reprodução. Como o senhor encara tal processo no tocante a prática dos docentes no Brasil?
RH – Complexa essa questão. Não me considero muito competente para
opinar sobre tema tão vasto como “o futuro das universidades brasileiras”, mas vou dar uma opinião mais rápida, a partir da vivência do meu próprio cotidiano universitário. Passamos por um momento de transição muito sério. O diferencial que caracterizava um ensino público superior de relativa qualidade e um corpo de professores com tempo para pesquisa e dedicação exclusiva, por exemplo, parece que está sendo colocado em xeque. A massificação do ensino, que por um lado poderia ser positiva, ao representar um maior acesso à Universidade por parte daqueles que até aqui pouco usufruíram dela, não pode ser feita às custas da qualidade. De “escolões” nós estamos cheios, principalmente no ensino superior privado, em que os professores são explorados por todo lado, com carga horária excessiva (reproduzindo o que há muito acontece no ensino médio), sem o menor tempo para se qualificar e fazer pesquisa. A quantidade de professores substitutos em muitas universidades públicas, muito mal pagos, sinônimo da precarização do trabalho a que vocês aludem, é reflexo da forma precipitada com que algumas mudanças estão sendo feitas. Outro dilema é o produtivismo – cobrar maior engajamento e produção é saudável, mas contabilizar tudo, transformar tudo em número, quantificar ao invés de qualificar os pesquisadores, os cursos, as pós-graduações. Isto é muito polêmico. Outra questão muito complicada é do elo público-privado e o papel das fundações universitárias nas políticas financeiras e de “autonomia” das Universidades. Muitos centros de pesquisa e laboratórios ficam de tal forma dependentes de recursos privados que seu atrelamento a interesses empresariais faz com que percam o próprio sentido de autonomia da pesquisa universitária. Outro dilema que se coloca para o que vocês estão chamando de “o futuro das universidades brasileiras” é a dissociação entre a Universidade e a sociedade, e neste sentido acho que há pelo menos algumas iniciativas positivas, inclusive na Geografia, que devem ser mais estimuladas, principalmente no que tange à assessoria a grupos “excluídos” ou subalternos, como fazem geógrafos como Bernardo Mançano em relação aos sem-terra, Marcelo de Souza em relação aos sem-teto e vários outros em relação a grupos como indígenas, quilombolas, etc. Sem falar na atuação, crescente, penso, junto a grupos de governos progressistas no que se refere a movimentos como os do orçamento participativo ou do planejamento urbano
renovado em sentido mais amplo.
EG - Em seu livro “Territórios Alternativos” (2006), o senhor propõe interessantes aproximações entre a Geografia e as Artes. Gostaríamos que o senhor comentasse a tríade Arte – Técnica – Geografia. E também como que o senhor vê as proposições poéticas nas pesquisas em Geografia. Estaria a Geografia brasileira contemporânea realmente aberta a essas aproximações?
RH - Vocês tomaram aí um texto específico do livro "Territórios Alternativos" cuja abordagem eu acabei não aprofundando, mas que é um texto de que eu gosto muito. Ele se originou de um encontro que houve na UFF, no início dos anos 90, justamente sobre ciência e arte. Este vínculo é difícil de ser construído, mas é um caminho que alguns geógrafos hoje estão trilhando, estão buscando trilhar, e que para muitos marca um pouco o que será denominado, de forma excessivamente genérica, de pós-modernidade, esse movimento que é também um movimento de maior abertura em relação à dimensão da sensibilidade e da subjetividade humanas, rompendo com o racionalismo e o estruturalismo que imperava antes. Eu lamento não ter desdobrado mais essa perspectiva, talvez até no futuro seja um campo que eu vá desdobrar e aprofundar. Nesse caso o que me despertou para esta temática foi o próprio trabalho do doutorado no oeste da Bahia, quando eu percebi as diversas formas de indignação da população local com a presença “gaúcha”, inclusive pela linguagem poética. Uma das pessoas mais intereressantes que contatei, e com quem acabei fazendo amizade, uma gaúcha, também utilizava a arte, mas para tentar romper esta barreira social entre os dois grupos, nordestinos e sulistas. Ela, mesmo sob a crítica de muitos “gaúchos”, passou a resgatar e a estimular a manifestação da cultura local. Passei a perceber que através da análise das identidades territoriais este elo entre ciência e arte é bastante visível, e mesmo necessário ser abordado. A cultura, a arte, é hoje, e dependendo do contexto, um grande instrumento político. Claro que a arte não deve ser apenas “instrumentalizada” politicamente, ela é antes de tudo o campo da criação, da ousadia, da imaginação, da liberdade, do fundamentalmente novo – mas, como tal, não pode deixar de ser sempre, de alguma forma, também, política. Naquele texto a que vocês se referem eu trabalhei com a música gaúcha e suas várias vertentes ou implicações políticas, desde aquela que não tem nenhum compromisso explícito com a denúncia ou o engajamento político, até aquelas que são claramente um instrumento de denúncia e contestação. No fundo, ela carrega sempre uma grande ambivalência, entre o conservar de uma cultura regional e a ruptura para novas formas, inclusive mais universais, de pensar o regional. Desde aquelas letras, que eu reproduzo no texto, extremamente conservadoras, de um gauchismo mais fechado e defensor do latifúndio, do status quo, até aquelas que se contrapõem radicalmente a essa visão conservadora e que cantam, por exemplo, a reforma agrária, a reconfiguração deste ambiente que é justamente o símbolo maior da identidade gaucha, o latifúndio, a estância pastoril. Se nós estamos aqui no Rio Grande do Sul e nos identificamos com esta terra, eles vão dizer, por que não partilhar esse mesmo espaço que de certa forma foi colocado como nosso símbolo maior? Na própria migração gaúcha pelo Brasil afora, onde se reproduz também essa tremenda desigualdade, é interessante reconhecer estas várias vertentes do regionalismo gaúcho. Ao mesmo tempo em que se engajam na fundação de novos Centros de Tradições Gaúchas e se aliam às antigas elites locais, por exemplo, também fundam células de partidos de esquerda e promovem um “gauchismo” muito mais aberto, capaz inclusive de dialogar e valorizar, também, as culturas locais. Voltando ao elo entre cultura – ou, num sentido mais estrito, arte – e política, devemos destacar novamente que toda cultura é “cultura política”, está de alguma forma imersa em relações de poder. Isto fica muito claro quando nos referimos às identidades. A própria construção e manifestação de uma identidade é sempre uma estratégia que está em jogo, uma estratégia de poder, ela é acionada enquanto uma estratégia para o grupo alcançar algum objetivo. Por exemplo, as manifestações culturais dos chamados povos tradicionais, hoje, no Brasil, eles no fundo recorrem a uma identidade como uma estratégia, não querendo com isso dizer que eles têm simplesmente uma visão que alguns autores chamam de (re)essencializadora da identidade. Outro termo mais adequado seria o de essencialização estratégica, que revela que este relativo fechamento identitário, em alguns momentos, ocorre em função de estratégias políticas, como a conquista definitiva de uma reserva, de suas terras. Trata-se de um momento estratégico para conquistas políticas que serão realizadas, para em um outro momento novamente o grupo se abrir, dialogar, se hibridizar, até, quem sabe, com outras culturas. Em relação ao sulista ou, como ele é conhecido genericamente quando migra, “gaúcho”, aí é um leque muito grande de diferentes posições que se desenham, desde aqueles que se fecham e se segregam, criando até ambientes como “bairros gaúchos” – com uma classe média, uma elite local bastante fechada - até aqueles que, por força até das próprias circunstâncias econômicas, muitas vezes, se relacionam de uma maneira muito mais aberta e culturalmente integrada, reavaliando e recriando sua própria cultura e identidade pela mescla com os valores e a cultura do outro. Porque no fundo qualquer identidade, a própria identidade gaucha nasce do hibridismo, de uma mistura. São elementos indígenas, espanhóis, portugueses/açorianos... que se misturaram em determinado momento da história e que deram origem a esta cultura que nos parece, hoje, aparentemente, tão homogênea, coesa. Mas ela foi construída na sua origem desse amálgama cultural de manifestações múltiplas, o que coloca sempre a possibilidade de você também se (re)hibridizar no contanto com o outro. Então é um viés que a Geografia tem que explorar mais. Hoje há vários caminhos nesse sentido dentro da chamada Geografia Cultural – que eu prefiro chamar de abordagem cultural na Geografia, pois, no fundo, em sentido amplo, e para ser mais justo com a conceituação antropológica de cultura, toda Geografia é Geografia cultural. Neste sentido, não podemos simplificar e trabalhar em Geografia cultural apenas com temas menores ou que simplesmente não encontraram guarida em outras perspectivas, aquilo que alguns, de um modo extremamente crítico, irão pejorativamente chamar de “perfumaria”. É justamente quando não ignoramos a natureza política da cultura e trabalhamos o elo ciência-arte, ou seja, enfatizando aquilo que a criatividade e o imaginário têm a contribuir para um pensamento “científico”, é que superamos esta leitura simplista da cultura em Geografia. Eu acho que este é um dos campos em que a Geografia mais tem avançado no Brasil, e onde tem, no futuro, um de seus mais amplos campos de exploração: Geografia e Literatura, Geografia e Cinema ou, num sentido mais amplo, Geografia e Representação, Geografia e Símbolos, Geografia e Identidade.. Aí é a nossa própria concepção de espaço que se amplia, não ficando restrito à visão funcional-materialista que dominou durante um certo tempo. Reconheço que há um enorme campo a explorar que se centraliza mais no campo do simbólico e das representações. Ainda que eu, como costumo dizer, tenda sempre a manter “um pé no chão”, trabalhando sempre na interseção entre materialidade e idealidade, mundo material e mundo simbólico, pois não consigo definir o espaço geográfico se não no sentido relacional que não só vê a indissociabilidade entre as dimensões material e ideal, como reconhece as relações sociais como sendo constituídas por essa espacialidade, só se efetivando através dela, com ela, dentro dela.
8 de set. de 2009
Sumário: O pensamento geográfico brasileiro V.2
Este é o volume 2 do livro O pensamento geográfico brasileiro. Nele o autor analisa o movimento de renovação da Geografia Clássica. Vale muito a pena ler os dois volumes.
Apresentação
As transformações da geografia clássica
o auge, difusão e declínio
A geografa brasileira já nasce clássica
A vaga da renovação: a new geography e a geografa ativa
As obras, os diferentes caminhos da renovação
David Harvey: valor e espaço em A justiça social e a cidade
Neil Smith: natureza e espaço em Desenvolvimento desigual
Massimo Quaini: natureza e sociedade histórica em Marxismo e geografa
Jean Tricart: meios estáveis e meios instáveis em Ecodinâmica
Milton Santos: sociedade e espaço em Por uma geografia nova
Yi-Fu Tuan: corpo e corporeidade espacial em Espaço e lugar
Yves Lacoste: escala e diferença em A geografa: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra
As rupturas e continuidades
Os eixos da crítica
As novas abordagens teóricas
O novo e o velho
Da paisagem ao espaço
As relações do novo e do velho
As linhas de força da renovação
Bibliografia
O Autor
Apresentação
As transformações da geografia clássica
o auge, difusão e declínio
A geografa brasileira já nasce clássica
A vaga da renovação: a new geography e a geografa ativa
As obras, os diferentes caminhos da renovação
David Harvey: valor e espaço em A justiça social e a cidade
Neil Smith: natureza e espaço em Desenvolvimento desigual
Massimo Quaini: natureza e sociedade histórica em Marxismo e geografa
Jean Tricart: meios estáveis e meios instáveis em Ecodinâmica
Milton Santos: sociedade e espaço em Por uma geografia nova
Yi-Fu Tuan: corpo e corporeidade espacial em Espaço e lugar
Yves Lacoste: escala e diferença em A geografa: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra
As rupturas e continuidades
Os eixos da crítica
As novas abordagens teóricas
O novo e o velho
Da paisagem ao espaço
As relações do novo e do velho
As linhas de força da renovação
Bibliografia
O Autor
Entrevista: Paul Claval
Paul Claval é um importante geógrafo francês. Leciona atualmente na Universidade Paris IV. Com trabalhos publicados na área de epistemologia da Geografia, Geografia Cultural dentre outros temas. Atualmente, seu trabalho tem contribuído para a discussão da cultura e sua disseminação, bem como para a compreensão das mais diversas formas de sua manifestação.
A entrevista que segue foi publicada na Revista Discente Expressões Geográficas da UFSC em 2008
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Entrevista com o Professor Paul Claval
Universidade de Paris, Sorbonne
Florianópolis, 13 de novembro de 20081
Revista Discente Expressões Geográficas (EG) - Bom dia, Professor!
Paul Claval (PC) - Bom dia!
EG – Professor, como se deu a sua aproximação com a Geografia?
PC – A minha aproximação com a Geografia, num primeiro momento, fez-se no momento em que fui estudante de Geografia, então me ensinaram, na França, sobre as bases da Geografia Física. Depois, quando eu saio da Universidade, conheço um interesse maior pela Geografia Humana. Nesse período, a Ciência Social teve um prestígio maior, sendo que aí as explicações mais importantes vinham da Economia. O resultado é que eu começo a me interessar pela Geografia Econômica ao fim dos anos 50, com os trabalhos de economistas espaciais e também de um grupo de geógrafos americanos, durante uns dez anos. Também trabalhei com todas as orientações da Nova Geografia (uma geografia baseada sobre a geografia econômica) dos anos 60, mas não completamente, porque nunca a utilização de métodos quantitativos me pareceu algo importante para a Geografia. O que foi importante, já nesse momento, foram os estudos dos processos espaciais: processos físicos, processos ecológicos, processos econômicos, processos psicológicos. Mas, para mim, a Geografia não é uma descrição do mundo, uma confecção, uma organização de tipologias. Acho que a Geografia estuda processos espaciais e minha primeira aproximação, quando consegue entender a continuidade do meu trabalho, é uma focalização sobre os problemas dos processos e dos mecanismos na Geografia. No começo, meu interesse foi pelos processos econômicos, depois pelos processos sociais e políticos nos anos 70. Enfim, para entender os processos sociais e processos econômicos necessita-se também entender um nível mais profundo da realidade social: um nível cultural. Daí meu interesse pela Geografia Cultural desde o começo dos anos 80. Acho que essa é a minha concepção de aproximação com a Geografia. Se você começa realizando uma descrição, o resultado é uma fabricação de tipologias, é muito difícil tirar dessas tipologias as explicações ou interpretações. É mais fácil quando você começa estudar os processos, todos os processos, que tem a dimensão espacial. Os resultados que acumulo em meus trabalhos são mais abstratos, mesmo se eu tento lhes dar uma forma pedagógica, do que a maioria dos trabalhos em Geografia do período contemporâneo.
EG – Como o senhor vislumbra as novas possibilidades de contribuição epistemológica de outras ciências (humanas e físicas) para com a Geografia e vice-versa? Quais são, a seu ver, os esclarecimentos e os "assombramentos" dessas possibilidades na análise do espaço?
PC – Na minha idéia, todas as ciências sociais têm a mesma alma: explicar ou entender os comportamentos humanos; mas com uma perspectiva diferente: na perspectiva temporal para a História; na perspectiva espacial para a Geografia; na perspectiva da lógica social para a sociologia; na perspectiva da riqueza para a economia; etc. O resultado, na minha concepção, é de não existirem fronteiras de idéias entre as disciplinas sociais. Todas têm interesse pelos mesmos processos e mecanismos, mas focalizados sobre a dimensão temporal; sobre a dimensão espacial; sobre a lógica dos estatutos e prestígios; sobre o dinamismo da riqueza e da circulação do dinheiro; ou sobre a dinâmica do poder. Essa concepção conduz a se observar outras disciplinas, emprestar métodos e conceitos e, ao mesmo tempo, introduzir nestes mesmos métodos, nesses mesmos conceitos, uma dimensão espacial que não é presente, por exemplo, na Sociologia, na Economia e nas Ciências Políticas. Por exemplo, quando trabalhei sobre a Geografia Política, no fim dos anos 70, uma parte da minha inspiração veio dos trabalhos de Max Weber, sobre a diversidade das formas de poder. Pois acho que estudar a Geografia Política não é estudar o território, a capital é estudar um jogo de poder, um jogo de diferentes formas de poder no espaço e a divisão entre as diferentes formas de poder. Eu tenho um interesse por Max Weber. Ele fez uma distinção entre o poder coercitivo e violento que nasce do uso da força física -, o poder legítimo e também a influência econômica, a influência intelectual. Nos trabalhos de Max Weber, a dimensão espacial não é representada. Você pode utilizar os conceitos weberianos e introduzir uma dimensão espacial. Por exemplo, quando você compara o poder coercitivo ligado à violência e o poder legítimo, o poder coercitivo não precisa ser de uma educação dos cidadãos, dos sujeitos das cidades. O poder legítimo que é construído sobre uma concessão comum do poder e das responsabilidades do Estado, esse tipo de poder se baseia sobre uma concepção partilhada, sobre uma obra de educação. A diferença parece importante, quando você leva em conta o custo de transferência das informações. É mais difícil construir um sistema político legítimo, com problema de investimento amplo no conhecimento por um período longo, por exemplo. Para desenvolver formas de poder coercitivo é mais fácil, ao mesmo tempo, o respeito para um poder é menos importante. A gente não respeita um tirano. Acho que o que é interessante num empréstimo desse tipo, de parte dos conceitos, de parte dos métodos, é poder viajar num campo da Geografia a outro. Nos anos 1970, fiz um mesmo trabalho sobre conceitos da Geografia Econômica e da Economia. Nos anos de 1960, as pessoas, principalmente os economistas, falavam das economias externas, sem dar uma dimensão espacial. Estas economias são fenômenos espaciais. Quando você analisa a fonte das economias espaciais, são fontes criadas na proximidade, na facilidade de transmitir informação: é um fenômeno geográfico que não foi analisado de uma maneira geográfica pelos economistas. Eu acho que estes tipos de empréstimos são muito importantes para a Geografia. São empréstimos de métodos com uma idéia de modificar e utilizar um alvo diferente, introduzindo conceitos das outras disciplinas sociais.
EG – Como o senhor vê o futuro das universidades brasileiras e mesmo do ensino básico no Brasil diante da conjuntura atual? A precarização do trabalho é um fenômeno evidente em marcha diante das estratégias capitalistas para sua alto-reprodução. Como o senhor encara tal processo no tocante à prática dos docentes no Brasil?
PC – Essa evolução é uma evolução geral, mais ou menos forte: os processos de precarização são ligados ao capitalismo, à evolução contemporânea, à mobilidade crescente, à dificuldade em conhecer as condições futuras e à dificuldade de criar empregos permanentes; é uma imposição do mundo moderno com conseqüências muito importantes no ensino primário, no ensino secundário e também nas universidades. Acho que não existe uma solução geral, mas é essencial uma importante contribuição ser mantida pelo setor público. Acho que a presença de universidades públicas, do ensino primário e secundário públicos, é importante para oferecer aos alunos, aos estudantes, possibilidades de como ascender socialmente. Se a qualidade do ensino público na escola primária e na escola secundária é baixa, as crianças das classes populares da sociedade, as quais não têm a possibilidade financeira de ingressar em uma escola “melhor”, não terão uma educação, primária e secundária, de qualidade e, para entrar na universidade, elas não terão as mesmas possibilidades que as crianças das classes maiores rendas. Em um país como o Brasil, onde o ensino superior nas universidades públicas é gratuito, o resultado que se tem é dos filhos e filhas das classes mais abastadas terem a possibilidade de ingressar nestas universidades, enquanto para as crianças das classes de baixa renda a única das opções é a de freqüentar as universidades privadas. Acho que a necessidade de se manter e de se recriar uma qualidade importante ao ensino público é capital, sendo que este é o único que oferece a possibilidade de limitar a precariedade do trabalho. São mais possibilidades de contratos em longo prazo para uma carreira longa no setor público ou no setor privado. Acho que a presença do Estado é muito importante neste domínio. Penso que é também uma questão de mentalidade. Em nosso mundo é muito difícil prever o futuro e quando você fala com os jovens, eles sabem que não será possível para eles trabalharem no mesmo setor durante toda sua vida. A evolução em direção a precariedade é menos dramática se agente já internalizar esta idéia, a idéia de uma preparação permanente, uma preparação para as mudanças, que repousa sobre um investimento permanente no domínio da educação. Nas sociedades modernas a situação onde o tempo dos estudos é entre os 18 e os 25 anos e depois, poder-se “dormir um pouco”, é uma situação do passado. Com a competição entre milhões de chineses e de indianos, não se pode mais dormir. São bem mais problemas da globalização e não um problema do capitalismo, o problema da abertura, um problema mais geral. Não sou demais otimista só neste domínio. Uma parte da resposta é política, mas contanto que a parte dos Estados permaneça componente essencial dos sistemas da educação. A segunda resposta é uma resposta individual à preparação. As mudanças da carreira têm um resultado simples, são limitados. Não se pode nas sociedades atuais se assegurar o mesmo tipo de permanência como no passado.
EG – Gostaríamos de saber o seu ponto de vista sobre a crise econômica pela qual passa o Mundo. Carregará o capitalismo nas suas entranhas a semente da sua própria destruição? O senhor sustenta que a crise financeira não é um fenômeno puramente técnico, mas tem uma causa social. É uma crise econômica por assim dizer? Por quê?
PC – É a crise mais importante da sociedade ocidental desde 1929. É a primeira vez desde 1929 que a totalidade da economia mundial está em dificuldade, mesmo se a situação na China e na Índia está um pouco menos dramática que aquela nos Estados Unidos. Ela é em grande parte ligada às instituições financeiras, às políticas de desenvolvimento e às facilidades de crédito. É fácil dizer aos jovens casais “você pode comprar uma casa muito, muito barata, você só tem que assinar. Durante o primeiro ano você não precisa pagar e no segundo ano só um pouco mais.” Agente assina, mas não tem o rendimento para pagar no futuro. A responsabilidade dos Bancos no desenvolvimento da crise contemporânea é uma responsabilidade essencial. Isso se pode constatar quando você compara o impacto da crise financeira nos diversos países europeus; a crise muito grande na Espanha e na Irlanda, por culpa de políticas fundiárias dos bancos, os quais foram muito “aventureiros” na Espanha. Uma política de construção de alojamentos muito dinâmica aonde centenas de famílias, casais que não podem por isso pagar. A mesma coisa na Irlanda. São países com receitas diferentes para os funcionamentos nacionais. Mesmo que haja uma “União Européia”, as diferenças que existem entre estas nações permanecem muito evidentes. Um problema muito importante para a vida da União Européia é essa diversidade das instituições econômicas. O problema do capitalismo mundial é o de ser, em principio, um capitalismo onde o lugar não existe; mas ele é em realidade o resultado da adição do capitalismo americano, do capitalismo inglês. Existem ligações, cada dia mais fortes, entre todos estes capitalismos nacionais, mas esta ligação não é total, daí o impacto diferenciado da crise dos três últimos meses no mundo. Uma crise das instituições financeiras mais do que uma crise do setor produtivo e para resolver esse tipo de crise entram aqui os Estados. São necessárias intervenções fortes, como se fizeram na Europa e nos Estados Unidos. Isso é significado de um declínio do Estado, que forma uma tendência nos últimos quinze ou vinte anos e que no campo da economia não pode manter-se. Para se evitar esse tipo de crise tem-se a necessidade de criar um sistema de fiscalização das políticas monetárias, das políticas dos bancos; uma melhor fiscalização das práticas dos bancos e dos créditos. Acho que há uma solução que parte de uma política sobre a crise econômica, uma crise que resulta das fraquezas que o sistema fez montar principalmente nos Estados Unidos onde a política de créditos foi muito aventureira. A questão que se põe é se no futuro exista um sistema capitalista: uma questão interessante, mas que, pessoalmente, não sei o que é o sistema capitalista. São tipos de organização diferentes. A instituição mais importante do sistema capitalista é a possibilidade de se fazerem trocas e comércio com outros países. Mas não existe uma autoridade com o título de capitalismo que organize a economia mundial. Existem mecanismos que não são perfeitos. Temos que transformar estes mecanismos por resultados para outra forma de sistema econômico, não só ao capitalismo, que não é uma realidade com prazos permanentes, é uma realidade muito inconstante. É a razão pela qual eu nunca uso o termo capitalismo, um termo muito vago e difícil. Todas as pessoas têm uma concepção desse termo, mas não a mesma. Assim é muito difícil de construir uma explicação científica quando nós não temos as mesmas concepções das regras existentes. A minha resposta não é perfeita, essa é uma pergunta muito difícil, uma questão sobre a urgência das políticas. Não sou um “guru”, não conheço o futuro. Acho que os responsáveis pelas políticas monetárias são pessoas geralmente com sentido das suas responsabilidades, importantes. Acho que a tentação em desenvolver novos tipos de produtos financeiros é uma tentação lógica. Acho que nos Estados Unidos, durante os últimos quinze anos, o poder monetário não tem normalmente uma fiscalização suficiente dos bancos no campo do desenvolvimento de créditos subprimes para comprar apartamentos e casas. Esses créditos desenvolveram-se de forma muito rápida sem intervenção do sistema dos bancos federais americanos. Foram os fatores responsáveis pela crise. Resolver a crise é outro problema. Acho que existe uma solução, mas em uma crise de dois a três anos, uma crise longa, sempre é difícil reconstruir a confiança dos atores no cenário econômico. Todas as crises econômicas são crises de desconfiança. Essa crise de desconfiança muda regras importantes para que se hajam resultados. Estas novas regras tendem a aparecer mais eficientes que as regras do passado.
EG – Há tempos que existe um discurso sobre a “primazia da prática” permeado nas discussões epistemológicas da Geografia. Tanto alguns representantes de Geografias Críticas como outros de Geografias Positivistas, comentam sobre a finalidade prática desta ciência. As interpretações de tal discurso são múltiplas. Como o senhor vê hoje a apropriação que se faz deste discurso principalmente nas universidades brasileiras? E como o senhor entende a afirmação sobre a primazia da prática na atividade dos geógrafos?
PC – A palavra “prática” é uma dessas palavras que possuem sentidos diferentes. Prática, para mim, é um conjunto das ações que a gente faz e repete sem reflexões. Faz parte de um conjunto de hábitos, de um conjunto dos comportamentos cotidianos. Essas práticas fazem parte geralmente dos comportamentos das classes populares e das classes médias. A prática é, enfim, a parte dos comportamentos que não é baseada sobre uma reflexão explícita. Eis a minha concepção. Ao mesmo tempo, a idéia que uma parte da criatividade da atividade humana é posta sobre esse comportamento, é uma idéia interessante, pois na vida cotidiana a gente enfrenta muitas dificuldades e as soluções surgem frente aos problemas práticos desta. Acho que é muito importante estudar as práticas da população: pessoalmente essa é uma das razões da existência de temas muito fortes sobre os contrastes entre as culturas populares do passado e as culturas de massa da sociedade de hoje em dia. Acho que é uma forma essencial para entender a dinâmica da sociedade no passado e a dinâmica da sociedade moderna. Mas é importante ver a transformação das práticas entre as sociedades do passado e as sociedades modernas. No passado, nas culturas populares, boa parte das técnicas produtivas era de monopólio das classes populares. Praticamente toda a produção de colheita era resultado da atividade de campesinos, sem a intervenção de engenheiros ou pesquisadores. Fizeram-se inovações. A idéia de melhorar a produção existia quando a gente tinha a possibilidade de cultivar novas plantas; eles cultivam novas variedades e novas plantas. As sociedades tradicionais não foram sociedades sem história. Foram sociedades com evoluções resultadas das práticas da vida cotidiana. Acho que a prática nas sociedades atuais tem um sentido diferente, pois uma parte das práticas vem da imitação das mídias, das telenovelas. A gente se conforma com o modelo de uma “star”, uma atriz, um ator. E a necessidade de comprar “este” objeto ou “esta” ferramenta, não nasceu da necessidade da vida cotidiana, mas, frequentemente, nasceu da necessidade de imitar os atores que vemos na televisão, no cinema, nos comerciais. As práticas não têm exatamente o mesmo sentido que nas sociedades populares. E acho que um problema essencial das sociedades modernas é que elas perderam uma parte da autenticidade das práticas do passado. As práticas da vida cotidiana não são ligadas da mesma maneira à história do indivíduo. São mais práticas difundidas a partir de poucos pólos de difusão, as culturas de massa. A razão pela qual acho difícil se falar de práticas no mundo moderno se deve ao fato de serem estas, diferentes tipos de práticas: as práticas herdadas do passado, com uma autenticidade mais forte; e as práticas de hoje, que são também autênticas, mas partes destas são cópias dos comportamentos de outras classes, de outros grupos sociais e até de outros países. E é difícil fazer essas práticas como uma forma superior do comportamento, na forma presente, é até uma pergunta importante nas sociedades atuais. Porém, sempre dizer “práticas”, tem-se sempre aí uma parte importante da verdade? Isso não é verdade. Isso é uma simplificação. Existem muitas pessoas importantes tratando do problema das práticas, mas não com um interesse crítico. Porque a prática é uma noção que muda através da modernização. É difícil utilizar uma ferramenta intelectual que foi desenvolvida no séc. XIX e no começo do séc. XX, normalmente onde os componentes tradicionais das sociedades rudimentares permaneciam importantes. Hoje a situação é diferente. Com a modernização dos comportamentos, as práticas têm uma divisão mais globalizada. Mas acho que elas não têm necessariamente a mesma autenticidade. É uma constatação que é importante no desenvolvimento de políticas. Não creiam vocês que todas as práticas são populares. Você tem que analisar as práticas de maneira a ver sua gênese. Depois entender o papel dessas práticas na vida contemporânea.
A entrevista que segue foi publicada na Revista Discente Expressões Geográficas da UFSC em 2008
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Entrevista com o Professor Paul Claval
Universidade de Paris, Sorbonne
Florianópolis, 13 de novembro de 20081
Revista Discente Expressões Geográficas (EG) - Bom dia, Professor!
Paul Claval (PC) - Bom dia!
EG – Professor, como se deu a sua aproximação com a Geografia?
PC – A minha aproximação com a Geografia, num primeiro momento, fez-se no momento em que fui estudante de Geografia, então me ensinaram, na França, sobre as bases da Geografia Física. Depois, quando eu saio da Universidade, conheço um interesse maior pela Geografia Humana. Nesse período, a Ciência Social teve um prestígio maior, sendo que aí as explicações mais importantes vinham da Economia. O resultado é que eu começo a me interessar pela Geografia Econômica ao fim dos anos 50, com os trabalhos de economistas espaciais e também de um grupo de geógrafos americanos, durante uns dez anos. Também trabalhei com todas as orientações da Nova Geografia (uma geografia baseada sobre a geografia econômica) dos anos 60, mas não completamente, porque nunca a utilização de métodos quantitativos me pareceu algo importante para a Geografia. O que foi importante, já nesse momento, foram os estudos dos processos espaciais: processos físicos, processos ecológicos, processos econômicos, processos psicológicos. Mas, para mim, a Geografia não é uma descrição do mundo, uma confecção, uma organização de tipologias. Acho que a Geografia estuda processos espaciais e minha primeira aproximação, quando consegue entender a continuidade do meu trabalho, é uma focalização sobre os problemas dos processos e dos mecanismos na Geografia. No começo, meu interesse foi pelos processos econômicos, depois pelos processos sociais e políticos nos anos 70. Enfim, para entender os processos sociais e processos econômicos necessita-se também entender um nível mais profundo da realidade social: um nível cultural. Daí meu interesse pela Geografia Cultural desde o começo dos anos 80. Acho que essa é a minha concepção de aproximação com a Geografia. Se você começa realizando uma descrição, o resultado é uma fabricação de tipologias, é muito difícil tirar dessas tipologias as explicações ou interpretações. É mais fácil quando você começa estudar os processos, todos os processos, que tem a dimensão espacial. Os resultados que acumulo em meus trabalhos são mais abstratos, mesmo se eu tento lhes dar uma forma pedagógica, do que a maioria dos trabalhos em Geografia do período contemporâneo.
EG – Como o senhor vislumbra as novas possibilidades de contribuição epistemológica de outras ciências (humanas e físicas) para com a Geografia e vice-versa? Quais são, a seu ver, os esclarecimentos e os "assombramentos" dessas possibilidades na análise do espaço?
PC – Na minha idéia, todas as ciências sociais têm a mesma alma: explicar ou entender os comportamentos humanos; mas com uma perspectiva diferente: na perspectiva temporal para a História; na perspectiva espacial para a Geografia; na perspectiva da lógica social para a sociologia; na perspectiva da riqueza para a economia; etc. O resultado, na minha concepção, é de não existirem fronteiras de idéias entre as disciplinas sociais. Todas têm interesse pelos mesmos processos e mecanismos, mas focalizados sobre a dimensão temporal; sobre a dimensão espacial; sobre a lógica dos estatutos e prestígios; sobre o dinamismo da riqueza e da circulação do dinheiro; ou sobre a dinâmica do poder. Essa concepção conduz a se observar outras disciplinas, emprestar métodos e conceitos e, ao mesmo tempo, introduzir nestes mesmos métodos, nesses mesmos conceitos, uma dimensão espacial que não é presente, por exemplo, na Sociologia, na Economia e nas Ciências Políticas. Por exemplo, quando trabalhei sobre a Geografia Política, no fim dos anos 70, uma parte da minha inspiração veio dos trabalhos de Max Weber, sobre a diversidade das formas de poder. Pois acho que estudar a Geografia Política não é estudar o território, a capital é estudar um jogo de poder, um jogo de diferentes formas de poder no espaço e a divisão entre as diferentes formas de poder. Eu tenho um interesse por Max Weber. Ele fez uma distinção entre o poder coercitivo e violento que nasce do uso da força física -, o poder legítimo e também a influência econômica, a influência intelectual. Nos trabalhos de Max Weber, a dimensão espacial não é representada. Você pode utilizar os conceitos weberianos e introduzir uma dimensão espacial. Por exemplo, quando você compara o poder coercitivo ligado à violência e o poder legítimo, o poder coercitivo não precisa ser de uma educação dos cidadãos, dos sujeitos das cidades. O poder legítimo que é construído sobre uma concessão comum do poder e das responsabilidades do Estado, esse tipo de poder se baseia sobre uma concepção partilhada, sobre uma obra de educação. A diferença parece importante, quando você leva em conta o custo de transferência das informações. É mais difícil construir um sistema político legítimo, com problema de investimento amplo no conhecimento por um período longo, por exemplo. Para desenvolver formas de poder coercitivo é mais fácil, ao mesmo tempo, o respeito para um poder é menos importante. A gente não respeita um tirano. Acho que o que é interessante num empréstimo desse tipo, de parte dos conceitos, de parte dos métodos, é poder viajar num campo da Geografia a outro. Nos anos 1970, fiz um mesmo trabalho sobre conceitos da Geografia Econômica e da Economia. Nos anos de 1960, as pessoas, principalmente os economistas, falavam das economias externas, sem dar uma dimensão espacial. Estas economias são fenômenos espaciais. Quando você analisa a fonte das economias espaciais, são fontes criadas na proximidade, na facilidade de transmitir informação: é um fenômeno geográfico que não foi analisado de uma maneira geográfica pelos economistas. Eu acho que estes tipos de empréstimos são muito importantes para a Geografia. São empréstimos de métodos com uma idéia de modificar e utilizar um alvo diferente, introduzindo conceitos das outras disciplinas sociais.
EG – Como o senhor vê o futuro das universidades brasileiras e mesmo do ensino básico no Brasil diante da conjuntura atual? A precarização do trabalho é um fenômeno evidente em marcha diante das estratégias capitalistas para sua alto-reprodução. Como o senhor encara tal processo no tocante à prática dos docentes no Brasil?
PC – Essa evolução é uma evolução geral, mais ou menos forte: os processos de precarização são ligados ao capitalismo, à evolução contemporânea, à mobilidade crescente, à dificuldade em conhecer as condições futuras e à dificuldade de criar empregos permanentes; é uma imposição do mundo moderno com conseqüências muito importantes no ensino primário, no ensino secundário e também nas universidades. Acho que não existe uma solução geral, mas é essencial uma importante contribuição ser mantida pelo setor público. Acho que a presença de universidades públicas, do ensino primário e secundário públicos, é importante para oferecer aos alunos, aos estudantes, possibilidades de como ascender socialmente. Se a qualidade do ensino público na escola primária e na escola secundária é baixa, as crianças das classes populares da sociedade, as quais não têm a possibilidade financeira de ingressar em uma escola “melhor”, não terão uma educação, primária e secundária, de qualidade e, para entrar na universidade, elas não terão as mesmas possibilidades que as crianças das classes maiores rendas. Em um país como o Brasil, onde o ensino superior nas universidades públicas é gratuito, o resultado que se tem é dos filhos e filhas das classes mais abastadas terem a possibilidade de ingressar nestas universidades, enquanto para as crianças das classes de baixa renda a única das opções é a de freqüentar as universidades privadas. Acho que a necessidade de se manter e de se recriar uma qualidade importante ao ensino público é capital, sendo que este é o único que oferece a possibilidade de limitar a precariedade do trabalho. São mais possibilidades de contratos em longo prazo para uma carreira longa no setor público ou no setor privado. Acho que a presença do Estado é muito importante neste domínio. Penso que é também uma questão de mentalidade. Em nosso mundo é muito difícil prever o futuro e quando você fala com os jovens, eles sabem que não será possível para eles trabalharem no mesmo setor durante toda sua vida. A evolução em direção a precariedade é menos dramática se agente já internalizar esta idéia, a idéia de uma preparação permanente, uma preparação para as mudanças, que repousa sobre um investimento permanente no domínio da educação. Nas sociedades modernas a situação onde o tempo dos estudos é entre os 18 e os 25 anos e depois, poder-se “dormir um pouco”, é uma situação do passado. Com a competição entre milhões de chineses e de indianos, não se pode mais dormir. São bem mais problemas da globalização e não um problema do capitalismo, o problema da abertura, um problema mais geral. Não sou demais otimista só neste domínio. Uma parte da resposta é política, mas contanto que a parte dos Estados permaneça componente essencial dos sistemas da educação. A segunda resposta é uma resposta individual à preparação. As mudanças da carreira têm um resultado simples, são limitados. Não se pode nas sociedades atuais se assegurar o mesmo tipo de permanência como no passado.
EG – Gostaríamos de saber o seu ponto de vista sobre a crise econômica pela qual passa o Mundo. Carregará o capitalismo nas suas entranhas a semente da sua própria destruição? O senhor sustenta que a crise financeira não é um fenômeno puramente técnico, mas tem uma causa social. É uma crise econômica por assim dizer? Por quê?
PC – É a crise mais importante da sociedade ocidental desde 1929. É a primeira vez desde 1929 que a totalidade da economia mundial está em dificuldade, mesmo se a situação na China e na Índia está um pouco menos dramática que aquela nos Estados Unidos. Ela é em grande parte ligada às instituições financeiras, às políticas de desenvolvimento e às facilidades de crédito. É fácil dizer aos jovens casais “você pode comprar uma casa muito, muito barata, você só tem que assinar. Durante o primeiro ano você não precisa pagar e no segundo ano só um pouco mais.” Agente assina, mas não tem o rendimento para pagar no futuro. A responsabilidade dos Bancos no desenvolvimento da crise contemporânea é uma responsabilidade essencial. Isso se pode constatar quando você compara o impacto da crise financeira nos diversos países europeus; a crise muito grande na Espanha e na Irlanda, por culpa de políticas fundiárias dos bancos, os quais foram muito “aventureiros” na Espanha. Uma política de construção de alojamentos muito dinâmica aonde centenas de famílias, casais que não podem por isso pagar. A mesma coisa na Irlanda. São países com receitas diferentes para os funcionamentos nacionais. Mesmo que haja uma “União Européia”, as diferenças que existem entre estas nações permanecem muito evidentes. Um problema muito importante para a vida da União Européia é essa diversidade das instituições econômicas. O problema do capitalismo mundial é o de ser, em principio, um capitalismo onde o lugar não existe; mas ele é em realidade o resultado da adição do capitalismo americano, do capitalismo inglês. Existem ligações, cada dia mais fortes, entre todos estes capitalismos nacionais, mas esta ligação não é total, daí o impacto diferenciado da crise dos três últimos meses no mundo. Uma crise das instituições financeiras mais do que uma crise do setor produtivo e para resolver esse tipo de crise entram aqui os Estados. São necessárias intervenções fortes, como se fizeram na Europa e nos Estados Unidos. Isso é significado de um declínio do Estado, que forma uma tendência nos últimos quinze ou vinte anos e que no campo da economia não pode manter-se. Para se evitar esse tipo de crise tem-se a necessidade de criar um sistema de fiscalização das políticas monetárias, das políticas dos bancos; uma melhor fiscalização das práticas dos bancos e dos créditos. Acho que há uma solução que parte de uma política sobre a crise econômica, uma crise que resulta das fraquezas que o sistema fez montar principalmente nos Estados Unidos onde a política de créditos foi muito aventureira. A questão que se põe é se no futuro exista um sistema capitalista: uma questão interessante, mas que, pessoalmente, não sei o que é o sistema capitalista. São tipos de organização diferentes. A instituição mais importante do sistema capitalista é a possibilidade de se fazerem trocas e comércio com outros países. Mas não existe uma autoridade com o título de capitalismo que organize a economia mundial. Existem mecanismos que não são perfeitos. Temos que transformar estes mecanismos por resultados para outra forma de sistema econômico, não só ao capitalismo, que não é uma realidade com prazos permanentes, é uma realidade muito inconstante. É a razão pela qual eu nunca uso o termo capitalismo, um termo muito vago e difícil. Todas as pessoas têm uma concepção desse termo, mas não a mesma. Assim é muito difícil de construir uma explicação científica quando nós não temos as mesmas concepções das regras existentes. A minha resposta não é perfeita, essa é uma pergunta muito difícil, uma questão sobre a urgência das políticas. Não sou um “guru”, não conheço o futuro. Acho que os responsáveis pelas políticas monetárias são pessoas geralmente com sentido das suas responsabilidades, importantes. Acho que a tentação em desenvolver novos tipos de produtos financeiros é uma tentação lógica. Acho que nos Estados Unidos, durante os últimos quinze anos, o poder monetário não tem normalmente uma fiscalização suficiente dos bancos no campo do desenvolvimento de créditos subprimes para comprar apartamentos e casas. Esses créditos desenvolveram-se de forma muito rápida sem intervenção do sistema dos bancos federais americanos. Foram os fatores responsáveis pela crise. Resolver a crise é outro problema. Acho que existe uma solução, mas em uma crise de dois a três anos, uma crise longa, sempre é difícil reconstruir a confiança dos atores no cenário econômico. Todas as crises econômicas são crises de desconfiança. Essa crise de desconfiança muda regras importantes para que se hajam resultados. Estas novas regras tendem a aparecer mais eficientes que as regras do passado.
EG – Há tempos que existe um discurso sobre a “primazia da prática” permeado nas discussões epistemológicas da Geografia. Tanto alguns representantes de Geografias Críticas como outros de Geografias Positivistas, comentam sobre a finalidade prática desta ciência. As interpretações de tal discurso são múltiplas. Como o senhor vê hoje a apropriação que se faz deste discurso principalmente nas universidades brasileiras? E como o senhor entende a afirmação sobre a primazia da prática na atividade dos geógrafos?
PC – A palavra “prática” é uma dessas palavras que possuem sentidos diferentes. Prática, para mim, é um conjunto das ações que a gente faz e repete sem reflexões. Faz parte de um conjunto de hábitos, de um conjunto dos comportamentos cotidianos. Essas práticas fazem parte geralmente dos comportamentos das classes populares e das classes médias. A prática é, enfim, a parte dos comportamentos que não é baseada sobre uma reflexão explícita. Eis a minha concepção. Ao mesmo tempo, a idéia que uma parte da criatividade da atividade humana é posta sobre esse comportamento, é uma idéia interessante, pois na vida cotidiana a gente enfrenta muitas dificuldades e as soluções surgem frente aos problemas práticos desta. Acho que é muito importante estudar as práticas da população: pessoalmente essa é uma das razões da existência de temas muito fortes sobre os contrastes entre as culturas populares do passado e as culturas de massa da sociedade de hoje em dia. Acho que é uma forma essencial para entender a dinâmica da sociedade no passado e a dinâmica da sociedade moderna. Mas é importante ver a transformação das práticas entre as sociedades do passado e as sociedades modernas. No passado, nas culturas populares, boa parte das técnicas produtivas era de monopólio das classes populares. Praticamente toda a produção de colheita era resultado da atividade de campesinos, sem a intervenção de engenheiros ou pesquisadores. Fizeram-se inovações. A idéia de melhorar a produção existia quando a gente tinha a possibilidade de cultivar novas plantas; eles cultivam novas variedades e novas plantas. As sociedades tradicionais não foram sociedades sem história. Foram sociedades com evoluções resultadas das práticas da vida cotidiana. Acho que a prática nas sociedades atuais tem um sentido diferente, pois uma parte das práticas vem da imitação das mídias, das telenovelas. A gente se conforma com o modelo de uma “star”, uma atriz, um ator. E a necessidade de comprar “este” objeto ou “esta” ferramenta, não nasceu da necessidade da vida cotidiana, mas, frequentemente, nasceu da necessidade de imitar os atores que vemos na televisão, no cinema, nos comerciais. As práticas não têm exatamente o mesmo sentido que nas sociedades populares. E acho que um problema essencial das sociedades modernas é que elas perderam uma parte da autenticidade das práticas do passado. As práticas da vida cotidiana não são ligadas da mesma maneira à história do indivíduo. São mais práticas difundidas a partir de poucos pólos de difusão, as culturas de massa. A razão pela qual acho difícil se falar de práticas no mundo moderno se deve ao fato de serem estas, diferentes tipos de práticas: as práticas herdadas do passado, com uma autenticidade mais forte; e as práticas de hoje, que são também autênticas, mas partes destas são cópias dos comportamentos de outras classes, de outros grupos sociais e até de outros países. E é difícil fazer essas práticas como uma forma superior do comportamento, na forma presente, é até uma pergunta importante nas sociedades atuais. Porém, sempre dizer “práticas”, tem-se sempre aí uma parte importante da verdade? Isso não é verdade. Isso é uma simplificação. Existem muitas pessoas importantes tratando do problema das práticas, mas não com um interesse crítico. Porque a prática é uma noção que muda através da modernização. É difícil utilizar uma ferramenta intelectual que foi desenvolvida no séc. XIX e no começo do séc. XX, normalmente onde os componentes tradicionais das sociedades rudimentares permaneciam importantes. Hoje a situação é diferente. Com a modernização dos comportamentos, as práticas têm uma divisão mais globalizada. Mas acho que elas não têm necessariamente a mesma autenticidade. É uma constatação que é importante no desenvolvimento de políticas. Não creiam vocês que todas as práticas são populares. Você tem que analisar as práticas de maneira a ver sua gênese. Depois entender o papel dessas práticas na vida contemporânea.
Sumário: A produção capitalista do espaço
Sumário
Apresentação
Capítulo 1 - A reinvenção da geografia: uma entrevista com os editores da New Left Review
Capítulo 2 - A geografia da acumulação capitalista: uma reconstrução da teoria marxista.
Capítulo 3 - A teoria marxista do Estado
Capítulo 4 - O ajuste espacial: Hel, Von Thunen e Marx
Cápítulo 5 - A geopolítica do capitalismo
Capítulo 6 - Do administrativismo ao empreendedorismo: a transformação da governança urbana no capitalismo tardio
Capítulo 7 - A geografia do poder de classe
Capítulo 8 - A arte da renda: a globalização e a transformação da cultura em commodities
Bibliografia
6 de set. de 2009
Sumário: Para onde vai o pensamento geográfico?
Sumário
Apresentação:
- a razão fragmentária e os paradigmas da geografia moderna
As filosofias e os paradigmas da geografia moderna:
- a baixa modernidade e o holismo iluminista-romântico dos séculos XVIII-XIX
- a modernidade industrial e a geografia fragmentária dos séculos XIX-XX
A ultramodernidade e a tendência pluralista atual
A insensível natureza sensível:
- O que concebemos por natureza na geografia
- as fontes e a evolução da concepção de natureza na geografia
- para a crítica do conceito de natureza na geografia
O homem estatístico:
- O que concebemos por natureza na geografia
- As fontes e a evolução da concepção de homem na geografia
- para a crítica do conceito de homem na geografia
A economia do espaço-mundo-da-mercadoria:- O que concebemos por economia na geografia
- As fontes e a evolução da concepção de economia na geografia
- para a crítica do conceito de economia na geografia
A busca de uma geografia da civilização sem a estrutura N-H-E:
- O homem atópico e a externalidade da natureza, da sociedade, do espaço
- Os problemas: a definição, a episteme, o método
- A busca da superação unitária
Política, técnica, meio-ambiente e cultura: a reestruturação do mundo moderno:- a reestruturação da política e do Estado e a reforma neoliberal
- a reestruturação da técnica e do meio ambiente e o novo espaço
- a reestruturação da cultura da repetição e a nova diferença
Da região à rede a ao lugar: a nova realidade e o novo olhar geográfico sobre o mundo:
- a realidade e as formas geográficas da sociedade na história
- o que são o espaço e seus elementos estruturantes
- a representação e o olhar da geografia num contexto de espaço fluido
De volta ao futuro
- Humboldt, Vernadsky e o homem metabólico de Marx
- Sorre, La Blache, Milton Santos e o bioespaço
- A sociabilidade e as categorias geográficas: reemergências
Bibliografia
O autor
Apresentação:
- a razão fragmentária e os paradigmas da geografia moderna
As filosofias e os paradigmas da geografia moderna:
- a baixa modernidade e o holismo iluminista-romântico dos séculos XVIII-XIX
- a modernidade industrial e a geografia fragmentária dos séculos XIX-XX
A ultramodernidade e a tendência pluralista atual
A insensível natureza sensível:
- O que concebemos por natureza na geografia
- as fontes e a evolução da concepção de natureza na geografia
- para a crítica do conceito de natureza na geografia
O homem estatístico:
- O que concebemos por natureza na geografia
- As fontes e a evolução da concepção de homem na geografia
- para a crítica do conceito de homem na geografia
A economia do espaço-mundo-da-mercadoria:- O que concebemos por economia na geografia
- As fontes e a evolução da concepção de economia na geografia
- para a crítica do conceito de economia na geografia
A busca de uma geografia da civilização sem a estrutura N-H-E:
- O homem atópico e a externalidade da natureza, da sociedade, do espaço
- Os problemas: a definição, a episteme, o método
- A busca da superação unitária
Política, técnica, meio-ambiente e cultura: a reestruturação do mundo moderno:- a reestruturação da política e do Estado e a reforma neoliberal
- a reestruturação da técnica e do meio ambiente e o novo espaço
- a reestruturação da cultura da repetição e a nova diferença
Da região à rede a ao lugar: a nova realidade e o novo olhar geográfico sobre o mundo:
- a realidade e as formas geográficas da sociedade na história
- o que são o espaço e seus elementos estruturantes
- a representação e o olhar da geografia num contexto de espaço fluido
De volta ao futuro
- Humboldt, Vernadsky e o homem metabólico de Marx
- Sorre, La Blache, Milton Santos e o bioespaço
- A sociabilidade e as categorias geográficas: reemergências
Bibliografia
O autor
2 de set. de 2009
Boa aula!
Esta é a capa da revista francesa Heródote - Revue de géographie et de géopolitique. Nela é possível ver uma sala de aula repleta de famosos alunos: Marx, Stálin, Lénin, Mao, Proudhon, Gramsci, Kropotkin e no canto, com chapéu de burro o então ministro para as relações exteriores dos EUA, H.Kissinger. Todos atentos ao desenho de um mapa feito no quadro-negro. Alunos que, de volta a sala, procuram "rever as suas idéias a partir de uma perspectiva espacial". Boa aula, então!
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