Doreen Massey* 1974
Tradução de Csaba Deák
1989
David Harvey (1973) Social justice and the city Edward Arnold, Londres
(Hucitec, São Paulo, 1980)
No momento em que escrevo esta resenha, já é evidente que A justiça social e a cidade é um livro importante. Trata-se de uma coleção de seis ensaios -- dos quais quatro já publicados e dois inéditos--, montados para ilustrar a evolução de um ponto de vista teórico, desde uma formulação liberal (os três primeiros artigos) até uma formulação um tanto ambiguamente denominada de 'socialista'. São todos estudos dentro do campo do urbanismo, e não colocações sobre a natureza da própria formulação teórica nessa área de estudo. Os leitores são, portanto, como que convidados a fazer sua própria teorização acerca da evolução que acompanham. No entanto, um capítulo introdutório, um apêndice no Capítulo 4, e o capítulo final fornecem uma base para tanto, pinçando filões particularmente importantes e estruturando o argumento.
A importância do livro deriva de três ordens de idéias. Primeiro, lança um desafio aos modos usuais de teorização em estudos urbanos e ciência regional.+ Segundo, esboça uma colocação dos termos de uma formulação alternativa. Em ambos os aspectos, a linha seguida por Harvey é sujeita a crítica, tanto de dentro como de fora de seu próprio campo. Mas não pode haver dúvida quanto a sua terceira contribuição: perguntas foram formuladas, e um espaço foi aberto para a discussão de questões que simplesmente não podiam sequer emergir dentro do quadro usual da ciência regional anglo-saxônica.
Os primeiros três capítulos, portanto, versando sobre processos sociais e formas espaciais, e sobre justiça social e sistemas espaciais, são os representantes do liberalismo. O fato de serem os mesmos formulações muito superiores a muitas das tentativas de teorização dentro dessa problemática1 só faz ressaltar o impasse que tal problemática representa. A linguagem e impenetrável, refletindo exatamente o que Harvey chama de 'inevitável relativismo informe' da respectiva posição; nós nos deparamos constantemente com a 'cidade como um sistema dinâmico complexo' e o 'sistema complexo que é a cidade' (ambos na p.46),++ como se o reconhecimento da complexidade pudesse substituir sua análise. Pior ainda, há a posição usual às voltas com 'o problema da justiça social' e o dualismo que surge entre teoria abstrata e ética. Harvey proporciona uma boa crítica desses aspectos da formulação liberal, especialmente em sua seção sobre as teorias de justiça social na Introdução. No entanto, o que é realmente grave são os efeitos teóricos dessa formulação. Em toda a extensão dos três primeiros capítulos, as questões de distribuição são abordadas dentro do âmbito da distribuição, a única indicação da consciência de um contexto mais amplo em que são inseridas sendo dada por dúvidas preocupadas acerca do fato de que o significado de 'nível de renda' depende, na verdade, de uma determinação a nível social. Lá pelo fim do Capítulo 3 desponta a descoberta de que distribuição não pode ser separada de produção, e desse ponto em diante a crítica começa a ser formulada em termos realmente claros. Uma outra consequência do liberalismo, ao nível teórico, e a exclusiva ênfase dada à análise ao nível do individual. Temos um exemplo perfeito disso na p.34: O espaço social, portanto, é composto por um complexo de sensações e imagens do indivíduo, e suas reações, sobre um simbolismo espacial que envolve esse mesmo indivíduo. Cada pessoa -- assim parece-- vive em sua própria teia de relações espaciais, por ele mesmo (sic)+ construída, e como que contida em seu próprio sistema geométrico.
A questão é, naturalmente, que direção tomar a partir desse ponto...
Tudo isso comporia um quadro deprimente, do ponto de vista analítico, não fosse o fato de que grupos de indivíduos parecem identificar imagens essencialmente similares acerca do espaço que os envolve, e também parecem elaborar modos semelhantes de julgamento dos significados e comportamentos no espaço (...)
O que não é bem uma resposta. Em outras palavras, a insistência em manter a análise ao nível do indivíduo conduz a 'explicar' semelhanças ou como acaso ou por uma asserção. Além disso, tal abordagem é necessariamente alicerçada em uma concepção essencialista/idealista da realidade daqueles indivíduos: A evidência está longe de ser segura, mas, a essa altura, parece razoável adotar como hipótese preliminar a visão de que os indivíduos tem uma certa proporção (que ainda não foi determinada) de 'imagem comum' derivada de normas de grupo (e provàvelmente de algumas normas de conduta em relação àquela imagem), e uma proporção de 'imagem única' fortemente idiossincrática e imprevisível. E a parte comum da imagem espacial deve ser considerada primeiro, se o objetivo for extrair alguns detalhes da natureza real do espaço social.
Harvey não desenvolve suficientemente a crítica e as implicações desse tipo de abordagem. Aliás, o fato de, mais adiante (p.197) citar a carta de Engels a Bloch como refutação, é um sinal de que a crítica pode não estar plenamente elaborada, já que o argumento de Engels é o mesmo que o de Harvey acima citado. Mas a verdadeira razão da falta de uma crítica rigorosa reside provàvelmente no argumento que segue.
A crítica explícita aos modos de teorização usuais, assim como a construção de uma alternativa, surge e ressurge ao longo do livro, sendo abordada na Introdução, no apêndice ao Capítulo 4, e na conclusão. A mesma inclui toda uma teia de argumentos entrelaçados e coloca (a mim certamente) algumas dificuldades sérias. O melhor talvez seja começar com alguns dos comentários sobre a natureza 'correta' da verificação.
Em muitos pontos do livro afirma-se que em 'teorias revolucionárias' a verificação só pode proceder através da 'prática'. O que é, no entanto, 'prática'? Em vários pontos ela e identificada como 'prática humana' ou 'prática social', mas isso não esclarece a definição. O que se torna claro, no entanto, é que prática -- o que quer que esta seja -- se coloca em oposição a teoria. Em alguns pontos essa oposição é explìcitamente negada, como na pág. 12: "Verificação se dá através da prática, o que significa que, num sentido muito importante, teoria é prática". Mas logo a frase seguinte reza que o conceito de sua oposição se mantém na nova abordagem teórica: "Quando teoria se torna prática atravès de seu uso então, e sòmente então, é ela realmente verificada" (grifo meu). Uma linha de argumento bem mais satisfatória pareceria decorrer de uma definição correta de prática como modo diferenciável, uma de suas formas sendo a prática teórica. O relacionamento da verificação no interior de estruturas teóricas pode então ser associado às diferentes formas de prática, incluindo prática teórica. Assim, Althusser escreve em Reading Capital: prática teórica é de fato seu próprio critério e contém em si protocolos bem definidos com os quais pode validar a qualidade de seu produto, isto é, o critério de cientificidade dos produtos de prática científica (p. 59).
O verdadeiro problema de procurar uma garantia de verificação fora da prática teórica, como o faz Harvey, é que a mesma acaba se transformando também em critério para testar a cientificidade entre práticas 'teóricas'. A verificação acaba se igualando à tarefa de efetuar distinções entre teorias 'revolucionária', status quo, e 'contra-revolucionária' -- os termos são de Harvey, e seu uso (como oposto à distinção ciência/ideologia) faz diferença significativa. Essa confusão remete a um outro problema, pois a distinção entre os referidos tipos de estrutura teórica coloca-se agora inteiramente em termos de seu 'potencial de ação revolucionária'. Assim, na p.150, 'teoria do status quo' é definida como sendo: Uma teoria alicerçada na própria realidade que pretende retratar e que representa corretamente o fenômeno considerado em um momento específico no tempo. Mas, ao delegar o status de verdade universal às suas proposições, ela se habilita a fornecer políticas prescritivas cujo resultado só pode ser a perpetuação do status quo.
Teoria revolucionária, por outro lado, é: uma teoria firmemente alicerçada na realidade que pretende representar, cujas proposições individuais são investidas de status de verdade contingente (estão no processo de se tornarem verdadeiras ou falsas dependendo das circunstâncias). Uma teoria revolucionária é formulada dialeticamente e é capaz de abarcar em si o conflito e a contradição. Uma teoria revolucionária oferece escolhas efetivas para momentos futuros atravès da identificação de escolhas imanentes em uma situação presente. A efetiva implementação de tais escolhas serve para validar a teoria e para estabelecer uma base para a formulação de uma nova teoria. Uma teoria revolucionária, consequentemente, oferece a perspectiva de criar verdade em vez de encontrà-la.
Quais são as diferenças cruciais? Ambas as teorias são 'alicerçadas na realidade' (presumivelrnente não deveriamos atribuir demasiado significado ao fato de a teoria revolucionária ser ali 'firmemente' alicerçada) e nisso elas são distintas da teoria contrarevolucionária. Segundo, afirmações de verdade derivadas de uma teoria de status quo são investidas de status 'universal', aquelas de uma teoria revolucionária são apenas contingentes. Isso é importante, mas, como veremos, seu significado é subestimado. Terceiro, há distinção entre a natureza das ações produzidas. Não estou tentando dizer que isso não tem importância. Certamente há uma relação entre 'teoria revolucionária' -- ou marxismo -- e ação revolucionária. Também é crucial identificar formulações ideológicas por suas funções predominantemente pratico-sociais. Porém um enfoque exclusivo sobre esse terceiro ponto leva Harvey às seguintes asserções: Proposições individuais e, até mesmo, '' estruturas teóricas como um todo não pertencem necessariamente, por si só, a qualquer uma das categorias anteriores. Elas entram em uma categoria ou outra no processo de seu uso em uma situação social específica e uma formulação teórica pode, com a alteração das circunstâncias e de acordo com sua aplicação, passar ou ser transferida de uma categoria a outra (p. 151 ).
Essa conclusão me parece insustentavelmente relativista, e alcançada através da não consideração suficiente da segunda das distinções enumeradas acima. Poderia o materialismo histórico, apesar da natureza contingente de suas afirmações de verdade, produzir políticas prescritivas que resultem na perpetuação do status quo? Até certo ponto, a resposta depende do nível de generalidade atribuída a 'formulações teóricas', mas ainda assim, a armadilha é perigosa. Estruturas teóricas podem, por si só, ser de status quo! Harvey lança mão de um conceito de 'cooptação contra-revolucionária -- a perversão de uma teoria de um estado revolucionário para outro contra-revolucionário'. Isso eu não entendo. Economismo e algumas formas de humanismo, por exemplo, podem ter nascido de perversões do marxismo, mas o fato crucial a seu respeito é que eles são não marxistas, eles são não aquilo que acontece ao materialismo histórico se a gente o deixa abandonado por muito tempo.O que está sendo descrito sob a rubrica 'teoria revolucionária' e de 'status quo' não é um inventário de características, senão 'marxismo' e positivismo lógico e seus derivados. A natureza das afirmações de verdade é essencial à definição desses corpos de teoria, e a uma crítica dos mesmos. Ainda mais: o status de afirmações de verdade implica uma conceituação da própria realidade. A universalidade de afirmações de verdade, derivadas a partir de um arcabouço positivista lógico, implica necessariamente uma visão idealista da realidade. Nesse sentido, é difícil entender como pode Harvey escrever que tal formulação pode "representar corretamente o fenômeno considerado", mesmo "em um momento específico no tempo" e em que sentido, afinal, pode ela ser "alicerçada na realidade".
Parte do problema talvez decorra de uma confusão entre ação no interior de uma luta ideológica, por um lado, e prática teórica real, por outro, em que conhecimento novo pode ser produzido. Mais uma vez, uma conceituação mais elaborada de 'prática' poderia ter ajudado a evitar o problema. É, talvez, nesse contexto que podemos entender 'reformulação revolucionária', elaborada na p.152 como sendo "tomar formulações de status quo ou contra-revolucionárias, colocá-las em movimento ou dar-lhes conteúdo real, e utilizá-las para identificar escolhas reais imanentes no presente" . Assim o conceito de homo economicus e as teorias construídas em torno dele podem ser úteis na luta, mas ainda assim o conceito continua sendo idealista, e como tal não poderá estritamente produzir conhecimento novo.
Finalmente nessa longa discussão, a natureza 'móvel' dos limites das várias categorias de teoria significa que a verdadeira crítica não está plenamente elaborada em termos de estruturas de 'status quo' e 'contra-revolucionárias'. Além disso, a inconsistência da posição é revelada nas conclusões, onde Harvey (com muita razão) tenta desenvolver algumas asserções normativas acerca da natureza da boa teorização. É difícil entender como isso combina com o status mutável das estruturas teóricas. Nos termos da crítica, 'teoria contra-revolucionária' parece, pela descrição, representar o humanismo liberal. A certa altura a mesma é criticada por levar à inação, sendo portanto nisso diferenciàvel de 'teoria revolucionária' . Infelizmente ela não tem sido sempre tão improdutiva -- um exemplo extremo é a moda 'de volta à natureza' nos Estados Unidos. O próprio Harvey escreve: "Ela pode também funcionar como suporte e legitinação espúrios a ações contra-revolucionárias concebidas para frustrar mudanças necessárias" (p.151). Então como faremos a distinção entre isso e ações 'corretas'? A própria teoria não pode deixar de estar presente no processo.
Um dos outros filões principais do livro é uma discussão sobre a 'natureza do urbanismo'. Um esboço geral da mudança de enfoque é dado na Introdução; o volumoso último capítulo é inteiramente dedicado ao assunto; e a discussão é retomada nas Conclusões. Numa primeira leitura eu achei o progresso geral das idéias, e particularmente o capítulo "Urbanismo e cidade" ao mesmo tempo difícil de desvendar e um tanto insatisfatório, mas ainda assim a discussão tem seu valor por introduzir conceitos e maneiras de pensar que nunca foram antes abordados pela ciência regional. Apesar da natureza muito preliminar de sua apresentação, os mesmos representam os primórdios de um desafio às formulações abstratas dessa disciplina.
Duas mudanças consideráveis que o livro encaminha quanto à natureza da conceituação de cidade são o abandono de sua consideração como 'coisa em si' e o enfoque exclusivo sobre os aspectos de distribuição. Esses dois movimentos são obviamente interligados, sendo a formação social o arcabouço mais amplo em que o processo de urbanização é situado, e o modo de produção dominante naquela formação social o determinante da estrutura de distribuição. O Capítulo 6 contém longas discussões introdutórias do significado de alguns conceitos necessários para tratar a urbanização dessa maneira: modos de produção, o conceito de excedente e a natureza de sua apropriação, as origens urbanas e a natureza da urbanização, e as mudanças no papel econômico da cidade em diferentes modos de produção. Na última seção, o autor coloca as questões cruciais da natureza do urbanismo como uma estrutura dentro de um arcabouço estrutural mais amplo. Ele também oferece um cursório, porem estimulante passeio histórico. Toca em algumas questões vitais -- o grau de especificidade da estrutura urbana, a medida em que a urbanização possui dinamismo próprio, as contradições criadas pelo processo urbano, e a estruturação de contradições pela urbanização. Partes da discussão começam aqui a ser realmente úteis. No entanto, surgem alguns problemas que vale a pena considerar.
Entre estes está uma tendência, repetida também em outras partes do livro, de ligar conceitos uns aos outros de uma maneira entusiástica, porém um tanto superficial. É notável que na segunda metade do livro isso implique frequentemente substituição de formulações desenvolvidas por Marx. Os conceitos introduzidos não são, via de regra, não-marxistas como tais, mas as substituições emprestam à análise, mais de uma vez, um grau preocupante de abstração a-histórica -- e frequentemente, de complexidade desnecessária. No caso da discussão do urbanismo,++++ é o conceito 'modo de produção' que é substituído por 'modo de integração social, política e econômica' . Esse último conceito é então ilustrado por três 'tipos' -- reciprocidade, redistribuição e mercado de trocas -- elaborados até em bastante detalhe. O propósito da introdução desses termos é possibilitar uma dissecação da relação entre sociedade e urbanismo (p.206), e é possivel vislumbrar que naquele contexto a abordagem tem certo potencial.
Algumas reservas, no entanto, devem ser feitas, particularmente a seu tratamento no caso em questão. Em primeiro lugar, em termos de análise histórica -- como oposto a um sistema de categorização -- a substituição parece ser inteiramente desnecessária. Quando o conceito de modo de integração é introduzido pela primeira vez (p. 206), seu proposito é 'substituir' o conceito de modo de produção. Já ao fim do capítulo, no entanto, os problemas de definição de períodos históricos são os mesmos que aqueles que surgem da utilização do conceito 'modo de produção'. Ainda mais: as referências da p.240 remetendo de volta ás p.199 e 202 deixam claro que os conceitos 'modo de integração econômica' e 'modo de produção' são vistos como sendo, ao nível descritivo, exatamente o mesmo. Em segundo lugar, a verdadeira diferença entre os dois conceitos reside na derivação de 'tipos' a partir deles. No caso de 'modos de produção' derivam-se 'feudalismo', 'capitalismo' etc, nomes de períodos de história concretos. De 'modos de integração' temos como derivados reciprocidade, redistribuição e mercado de trocas -- nomes de 'tipos ideais' que, pela descrição apresentada, não se limitam a épocas históricas determinadas. Assim, na p.265 os termos reciprocidade e redistribuição são utilizados como análise da intervenção estatal na sociedade capitalista-monopolista urbanizada. Parece-me que uma análise da intervenção estatal como tal teria sido bem mais esclarecedora, e evitaria aquele formalismo abstrato espúrio que pode resultar do uso de 'tipos ideais' dessa maneira. Além disso, a introdução de tais termos 'trans-históricos' afasta mais um pouco a análise do processo histórico, por serem os primeiros essencialmente descrições de formas assumidas por diversos períodos históricos e como tais são resultado, em última análise, do modo de produção dominante. E o modo de produção que produz tanto esses padrões de distribuição quanto imprime a dinâmica da transição de uma forma a outra.
Algumas reservas, no entanto, devem ser feitas, particularmente a seu tratamento no caso em questão. Em primeiro lugar, em termos de análise histórica -- como oposto a um sistema de categorização -- a substituição parece ser inteiramente desnecessária. Quando o conceito de modo de integração é introduzido pela primeira vez (p. 206), seu proposito é 'substituir' o conceito de modo de produção. Já ao fim do capítulo, no entanto, os problemas de definição de períodos históricos são os mesmos que aqueles que surgem da utilização do conceito 'modo de produção'. Ainda mais: as referências da p.240 remetendo de volta ás p.199 e 202 deixam claro que os conceitos 'modo de integração econômica' e 'modo de produção' são vistos como sendo, ao nível descritivo, exatamente o mesmo. Em segundo lugar, a verdadeira diferença entre os dois conceitos reside na derivação de 'tipos' a partir deles. No caso de 'modos de produção' derivam-se 'feudalismo', 'capitalismo' etc, nomes de períodos de história concretos. De 'modos de integração' temos como derivados reciprocidade, redistribuição e mercado de trocas -- nomes de 'tipos ideais' que, pela descrição apresentada, não se limitam a épocas históricas determinadas. Assim, na p.265 os termos reciprocidade e redistribuição são utilizados como análise da intervenção estatal na sociedade capitalista-monopolista urbanizada. Parece-me que uma análise da intervenção estatal como tal teria sido bem mais esclarecedora, e evitaria aquele formalismo abstrato espúrio que pode resultar do uso de 'tipos ideais' dessa maneira. Além disso, a introdução de tais termos 'trans-históricos' afasta mais um pouco a análise do processo histórico, por serem os primeiros essencialmente descrições de formas assumidas por diversos períodos históricos e como tais são resultado, em última análise, do modo de produção dominante. E o modo de produção que produz tanto esses padrões de distribuição quanto imprime a dinâmica da transição de uma forma a outra.
Nesse contexto, é significativo que uma grande parte do capítulo final seja dedicado a Lefèbvre, e particularmente à Revolução Urbana (Lefèbvre, 1970). Assim como Harvey, também Lefèbvre centra sua análise sobre categorias trans-históricas -- no caso, rural, industrial e urbano. A confusão que isso gera emerge no argumento. Ao longo da maior parte da discussão, Harvey está de acordo com a analogia de Lefebvre entre urbanismo e conhecimento científico. Ambos possuem estruturas distintivas com sua dinâmica interna própria. Ambos podem alterar ocasionalmente a estrutura da base econômica de uma maneira fundamental. No entanto ambos são canalizados e submetidos a restrições pelas forças e influências oriundas da base econômica e em última instância, devem ser relacionados à produção e reprodução da existência material para poderem ser apreendidos (p. 307).
Em uma análise marxista esta é uma asserção bastante geral e virtualmente incontestável, mas vale lembrar que em nenhum outro lugar na geografia 'inglesa' são tais conceitos utilizados, mesmo a um tal nível de generalidade. 0 ponto de discórdia de Harvey em relação a Lefèbvre é a asserção deste último de que "o urbanismo hoje domina a sociedade industrial". Entendida em certos sentidos, essa questão é crucial. O problema consiste em ser preciso em sua formulação, Por exemplo, o que significa 'sociedade industrial', e qual sua relação com um modo de produção? Harvey escreve: "Dizer que o urbanismo hoje domina a sociedade industrial é dizer que as contradições -- entre, de um lado, urbanismo como uma estrutura no processo de transformação, e de outro, a dinâmica interna da sociedade industrial anterior -- são geralmente resolvidas a favor do primeiro".
Dois pontos devem aqui ser assinalados.' Em primeiro lugar, sociedade 'urbana' e 'industrial' parecem ser concebidas como descrições suficientes, com um nível de abstração significante. Apesar de o fato ser admitido alhures no livro, não está explicitado a essa altura que 'industrial' e 'urbano' somente adquirem significado quando inseridos no contexto de uma formação social especifica. Segundo, o autor fala da "dinâmica interna da sociedade industrial anterior". Aqui também, isso implica que a dinâmica de uma sociedade como um todo pode ser analisada em termos de industrialização como tal, quando na verdade o próprio processo de industrialização e seus efeitos são subordinados a sua própria articulação atravès do modo de produção dominante. Harvey parece empenhado em responder uma questão cujos próprios termos de referência deveriam ser rejeitados. É verdade que no curso de sua resposta fica claro que ele mantém a discussão estritamente no contexto de uma sociedade na qual predomina o modo de produção capitalista. No entanto, a confusão persiste. Por exemplo, ao avaliar a eficácia relativa dos efeitos do urbanismo e da industrialização, ele escreve: "A produção, apropriação e circulação da mais-valia não chegaram a ser subordinadas à dinâmica interna do urbanismo, senão que continuam a ser reguladas por condições derivadas da sociedade industrial".
Assim, o urbanismo e rejeitado, mas a favor da industrialização, quando o que é de fato a determinante crucial é a natureza capitalista da sociedade em discussão. Pode ser que eu esteja interpretando Harvey erroneamente nessa questão, mas o uso de expressões como 'sociedade urbana' e 'sociedade industrial' presta-se inegàvelmente a tal interpretação, e facilmente desvia a análise para uma abordagem descritiva de forma, em que a dinâmica do modo de produção se perde, e onde, consequentemente, a natureza de classe da estrutura da sociedade pode ser completamente soterrada.
Assim, o urbanismo e rejeitado, mas a favor da industrialização, quando o que é de fato a determinante crucial é a natureza capitalista da sociedade em discussão. Pode ser que eu esteja interpretando Harvey erroneamente nessa questão, mas o uso de expressões como 'sociedade urbana' e 'sociedade industrial' presta-se inegàvelmente a tal interpretação, e facilmente desvia a análise para uma abordagem descritiva de forma, em que a dinâmica do modo de produção se perde, e onde, consequentemente, a natureza de classe da estrutura da sociedade pode ser completamente soterrada.
E no entanto, há algumas questões estreitamente correlacionadas ainda que diversamente formuladas, que exigem respostas urgentes. Elas dizem respeito à análise do processo de urbanização enquanto origem e causa de contradições na estrutura global da formação social, e também enquanto locus específico de contradições, no interior da mesma formação social. De especial interesse no contexto de tais questões, vem o significado da irracionalidade espacial na estrutura urbana resultante, e os requisitos de intervenção do Estado e de planejamento espacial exigidos pelo processo de urbanização.
Muitos outros tópicos do livro poderiam ser tomados como potencial para novos debates. Há, por exemplo, um fio condutor de discussão sobre a natureza do espaço em termos de várias forrnas de análise. Um debate qve o livro jà estimulou entre os geógrafos diz respeito à natureza da renda do solo nas cidades em economias capitalistas monopolistas. Além de introduzir conceitos marxistas de renda, e provocar o retorno ao 'original' no Volurne 3 de O capital, Harvey também tenta estabelecer sua própria posição teórica sobre a natureza da renda do solo urbano. Sua interpretação de que ela contém uma parcela consideravel da renda absoluta é objeto de acalorado debate entre geógrafos e planejadores. O raciocínio de Harvey a esse respeito é sujeito a criticas muito específicas (seu conceito de classe, por exemplo, e sua discussão inacabada da fundamentação problemática de Marx da possibilidade de renda absoluta sobre diferenças intersetoriais na composição orgânica de capital), mas sua corajosa tentativa deve pelo menos sacudir um bom número de geógrafos-economistas para abandonarem seus pressupostos implícitos e tautológicos de que tudo pode ser explicado em termos de renda diferencial.
Esse livro e uma intervenção no debate sobre urbanismo, e como tal deve ser levado a sério. Na verdade ele deixa a impressão de que a ruptura com a problemática inicial de liberalismo e humanismo não foi inteiramente consumada. A terceira e última parte é denominada, à maneira de um compromisso, de 'Sintese', e o último parágrafo do livro refere-se a um "urbanismo genuinamente humanizante" e a "um urbanismo apropriado à espécie humana" -- frases essas que me parecem constituir uma aproximação excessiva do campo inimigo, mesmo sob a garantia de se tratar de uma missão de conversão. Deve-se enfatizar, no entanto, que as críticas levantadas, nessa resenha, o foram de dentro da aceitação do ponto de vista teórico que Harvey tenta estabelecer. Como tal, elas são parte do resultado que o livro pretendia alcançar: a abertura de uma nova estrutura de debate para o estudo do processo urbano.
Bibliografia
Althusser, Louis A & Balibar, Étienne (1970) Reading capital New Left Books, London
Lefèbvre, Henri (1970) La révolution urbaine Gallimard. Paris
Doreen Massey é geógrafa, professora e chefe do Departamento de Ciências Sociais da Open University em Milton Keynes.
* Este artigo resulta de uma solicitação do editor de Environment & Planning A por uma resenha de Social justice and the city, David Harvey, Edward Arnold, London, 1973, 336p.
+ Ciência regional: geografia, em seu sentido mais lato (N. do T.).
1 A definição de 'problemática' aqui utilizada é aquela dada no glossário de Althusser & Balibar (1970).-- [Em termos sintéticos: uma palavra ou conceito só adquire significado dentro do arcabouço teórico ou ideológico em que é utilizado: sua problemática (N.do T.).]
++ A numeração de páginas citadas refere-se à edição inglesa (N. do T.).
+++ A ironia refere-se à expressão considerada sexista -- que utiliza o plural e a indefinição do gênero no masculino-- por uma reação contra a discriminação sexual que na década de 70 já tinha força expressiva na Inglaterra (N. do T.).