Campo e cidade no Brasil contemporâneo
Ruy Moreira
A cidade é um fenômeno espacial que praticamente nasce com a sociedade. Para alguns estudiosos, literalmente. Para outros, a partir de um momento além. O campo, iversamente, é um fenômeno recente, correspondendo à divisão territorial do trabalho engendrada pela moderna sociedade capitalista.
No Brasil o fenômeno da cidade e do campo só em linhas gerais seguiu o modelo universal. Há uma forma histórica própria segunda a qual a cidade e o campo nascem e se relacionam no Brasil, bem como o modo de desenvolvimento de sua evolução até os dias de hoje.
A CIDADE E O CAMPO NO TEMPO E NA EVOLUÇÃO GERAL
Três são as formas históricas da relação cidade-campo enquanto modo de organização espacial das sociedades no tempo: cidade e campo numa sociedade de cultura rural; cidade e campo numa cultura de divisão territorial de trabalho; e cidade e campo numa sociedade de cultura urbana.
1. A cidade e o campo numa sociedade de cultura rural Childe correlaciona o nascimento da cidade ao ritual do enterro dos mortos. No ponto da localização do enterro e da peregrinação em homenagem aos mortos, aí aos poucos ter-se-ia erguido a cidade (CHILDE: 1966). Lewis correlaciona-o ao exercício do poder do macho, nas sociedades patriarcais, a cidade expressando esse poder (LEWIS: 1992).
Marx correlaciona-o ao surgimento do excedente na história, e, com o excedente, ao surgimento da divisão social do trabalho, que introduz o sacerdócio, a administração e a função militar como funções especializadas nas sociedades até então comunitárias. E, assim, ao surgimento das sociedades de classes, a cidade sendo a expressão desse poder (MARX e ENGELS, s/d).
Seja como for, a cidade que então nasce, surge num contexto de história marcada pela absoluta presença de uma economia e sociedade de base rural. As relações econômicas e societárias são determinadas pela presença da terra como meio de produção, daí derivando toda as formas de representação de mundo da população, inclusive a residente nas cidades.
As classes sociais residentes na cidade são classes rurais, com a particularidade de residirem em habitações citadinas e realizarem seu cotidiano na faina das atividades rurais.
O trabalho é uma atividade rural, portanto, não urbana, e por isso do universo rural e não do urbano vêm todos os símbolos de referência de mundo dos homens. O espaço e o tempo natural marcam os momentos do dia-a-dia. O homem e a natureza se fundem numa recíproca relação de pertencimento. E o imaginário é impregnado de entidades e entes vindos desse mundo assim entendido (MOREIRA, 2004).
Ademais, é um imaginário local. O fundamento rural e o nível técnico dos meios de transferência (transportes e comunicações) limitam o horizonte geográfico ao horizonte da aldeia, fundando uma cultura enraizada essencialmente no gênero de vida local, as características do gênero encerrando o mundo perceptivo e real da população.
É nesse espaço vivido que evoluem e se desenvolvem as relações entre a cidade e o “campo” (a rigor, uma relação cidade-mundo). E segundo uma forma de estrutura em que gênero de vida e modo de vida se organizam, centrados nos respectivos modos de produção.
2. A cidade e o campo numa cultura de divisão territorial do trabalho O surgimento da sociedade capitalista introduz a divisão territorial do trabalho como norma de organização da produção e das trocas, criando a cidade e o campo que hoje conhecemos como as duas células fundamentais dessa divisão territorial: à cidade cabem as funções dos setores secundário e terciário e o campo as relacionadas ao setor primário, assim se estabelecendo a relação de interdependência que leva cidade e campo se relacionarem numa relação de troca de produtos secundários e terciários por produtos primários. Produção, distribuição e consumo surgem assim como funções territorialmente distintas e interligadas, a cidade e o campo suprindo uma à outra e fazendo uma a consumidora dos produtos da outra, com a cidade no comando das relações. O comando da cidade submete o campo ao seu imaginário, quebrando-se a antiga relação de imediato pertencimento. Há, entretanto, três fases distintas de evolução nessas funções e trocas respectivas, estabelecendo três formas distintas de relação cidadecampo no tempo: a de fusão, a de separação e a de refusão.
A fase de fusão corresponde ao momento histórico de nascimento do capitalismo no interior da sociedade em que surge, na qual cidade e campo não se distinguem ainda, mantendo-se nos termos históricos da unidade e identidade rurais que vimos acima e que o capitalismo pouco altera nos começos do seu desenvolvimento. Tal fato se deve ao nascimento do capitalismo primeiro no ambiente rural do campo, só mais tarde transferindo-se para ir desenvolver-se na cidade. É a fase correspondente
ao período manufatureiro do modo de produção capitalista.
A fase de separação corresponde ao momento de desenvolvimento mais adiantado do capitalismo, em que a divisão técnica do trabalho torna-se a base estrutural de organização das forças produtivas, cidade e campo sofrendo as transformações que fazem da cidade o centro por excelência da produção da indústria e do terciário e o campo se esvaziando das funções rurais amplas do passado para limitar-se à função primárioagrícola imposta pelas necessidades da divisão do trabalho e das trocas. A
cidade rompe com o entorno rural, ensejando a revolução burguesa que prepara o ambiente político necessário ao desenvolvimento acelerado das novas forças produtivas ainda presas ao casulo da manufatura. É a fase correspondente ao período fabril criado pela primeira e difundido como norma pela segunda revolução industrial, quando efetiva e maduramente se institui e se implementa o modo de produção capitalista.
A fase de refusão corresponde ao momento atual, a do capitalista avançado, em que, com apoio na ação do Estado, a divisão do trabalho progressivamente se mundializa e se globaliza, cidade e campo passando a organizar-se com base numa difusão dos meios de transferência (meios de transporte, de comunicação e de transmissão de energia) que leva a indústria a poder localizar-se onde melhor lhe aprouve, fugindo das pressões políticas e de custos da cidade e migrando para localizar-se e desenvolver-se no campo, a função primário-agrícola e industrial se reencontrando e se fundindo no campo e a cidade se terciarizando como função econômica exclusiva. É a fase correspondente ao período tecnoeconômico da alta segunda e particularmente da terceira revolução industrial.
3. A cidade e o campo numa sociedade da cultura urbana Uma certa combinação de pressões políticas e de custos e de novas possibilidades de mobilidade territorial criadas no âmbito da tecnologia responde por este momento, que já analisamos como fase de refusão da relação cidade-campo capitalista.
A migração que instala a indústria nas áreas até então agrícolas, pastoris e extrativistas do campo, industrializando-o e levando a indústria a se combinar com a agricultura na forma complexa da agro-indústria nessas áreas, urbano-industrializa o campo e praticamente mergulha cidade e campo numa mesma cultura, a cultura urbana até então apanágio da cidade.
Uma espécie de fim de divisão de trabalho, técnica e territorial, que recria as relações entre setores econômicos até então estrutural e territorialmente separados, e uma certa homogeneização de valores que expressam um mundo e um modo de vida até então tidos como próprios e privilégio da cidade toma em comum cidade e campo, tornando-os, de novo, um mundo único, desta vez configurado na cultura urbana, que se propaga pelos campos, aí eliminando o que era ainda remanescente da cultura rural do passado. O campo se torna tão urbano quanto a cidade, fazendo o todo do espaço um “chão do capital”, na feliz expressão de Francisco de Oliveira (1977).
A CIDADE E O CAMPO NO TEMPO E NA EVOLUÇÃO BRASILEIRA
A cidade e o campo surgem e evoluem no Brasil apenas no geral em comum com o que vimos acima. O caráter agro-mercantilexportador inicial da sociedade brasileira determina uma forma histórica específica de espaço que distingue o que é cidade e o que é campo e assim o que é a relação cidade-campo no Brasil, bem como as formas que vão assumindo na medida da evolução e do tempo.
1. A agroexportação e a cidade e o campo no Brasil Colônia O caráter agromercantil e exportador, modo de dizer uma economia que é instalada no Brasil pela colonização portuguesa e vinculada ao processo de acumulação primitiva européia, determina nestes termos o caráter social da cidade e do campo, pouco então distinguindo-os entre si.
A economia tem uma raiz rural, mas é a natureza mercantil e exportadora confere a este rural sua especificidade, impregnando-a de uma cultura que respira e referencia-se em valores mercantis e externos. Há uma espécie de cosmopolitismo nesse rural, que a faz um mesmo quadro com a cidade. È esta assim uma cidade de um mundo de economia rural, mas um rural de cultura mercantil. Singer (1973) designou-a cidade de conquista e Oliveira (1977) de cidade que comanda o campo, mas que devemos compreender como uma cidade que expressa uma economia agro-mercantilexportadora e assim povoada e constituída por uma elite organizadora de uma economia rural com os olhos no mercado e valores externos onde este é
determinado e se localiza.
É assim que a cidade nasce no Brasil nesta ambiguidade de centro de função política de um mundo de cosmopolitismo rural, sem que cumpra uma função propriamente econômica numa dentro de um todo voltado para a acumulação do capital e o mercado externo. Uma cidade inserida num mundo rural, mas que o organiza no enfoque de um mundo de olhos políticos e cosmopolita. Dito de outro modo, uma cidade que nasce não das necessidades internas de uma divisão territorial de trabalho em uma sociedade rural como vimos na ambiência européia, mas sendo diferenciada ao tempo que integrada numa relação de pertencimento a um mundo local rural de origem externa quase que inteiramente. Trata-se de uma cidade efeito de uma ação que vem de fora e ao mesmo tempo pertence uma organização social e econômica que localmente por meio dela entroniza o de dentro e o de fora, dela fazendo a um só tempo rural e urbano, ambiguamente. Daí, cidade de conquista e de comando sobre o
“campo”.
Quando, então, a administração portuguesa divide o território colonial em comarcas, definindo a divisão política que o tempo transformará na malha brasileira dos municípios, instituindo a cidade como sua sede e as respectivas câmaras como fórum de comando da representação política, a cidade se estabelece e se especifica como um dado da política e de mando da elite fundiária, fundando-se em todo o Brasil com estas características.
Há uma cidade, mas não há um campo e uma relação cidade-campo, conseqüentemente, aqui se estabelecendo o ponto de semelhança com a cidade e o campo de cultura rural das sociedades passadas da história humana, mas também o da sua especificidade e diferença.
2. A cidade e o campo da divisão capitalista do trabalho e das trocas Este quadro se modifica com a independência e a implantação da agroexportação em bases não mais coloniais e escravistas que ocorrem no transcurso do século XIX. De um lado, a cidade consolida-se como o privilégio de mando exclusivo da elite rural tornada gestora de um Estado Nacional, e de outro lado se separa do campo para vir a receber a indústria e o terciário que aos poucos o próprio desdobramento da agroexportação implementa. Surge a cidade que poderíamos compreender como o centro político de organização e comando do processo de passagem da economia
agro-mercantilexportadora para a economia urbano-industrial moderna.
A modernização comandada “prussianamente” de cima mantêm a nova cidade culturalmente formada nos valores da elite rural progressivamente transformada em elite urbano-industrial, modelando-se o urbano nessa transferência de cultura dos de cima. Um processo de constituição do “moderno” nos valores do “arcaico” que a literatura de romance retrata com incrível transparência em sua obra romanesca.
A implementação não vem então de imediato. Dá-se uma passagem através da seqüência de transformações que levam a organização do espaço brasileiro a estruturar-se de uma autonomia regional numa relação de divisão territorial do trabalho que significa a integração das regiões numa relação para dentro em seu processo de produção e de trocas.
Metamorfose que Oliveira designa a passagem de uma “economia regional nacionalmente organizada” para uma “economia nacional regionalmente organizada” (OLIVEIRA, 1987). E que vem na medida do avanço da industrialização (MOREIRA, 2004).
O que é a cidade concreta dessa transição depende do recorte regional em que surge e se desenvolve. Mas no geral é a reafirmação da cidade-sede do poder político da elite rural municipal, a cidade do poder agrário local que a sociedade industrial moderna “prussianamente” herda do colonial-escravismo.
Dado a ausência inicial da indústria, a nova cidade neste momento mantém-se à margem de uma divisão técnica e territorial do trabalho, preservando a função de gestão política e de intermediação mercantil entre a região agroexportadora e o mercado mundial. É neste sentido que Oliveira a vê como uma cidade subordinada ao comando do campo, tomando o exemplo da cafeicultura, enquanto cidade ainda sujeita ao domínio da oligarquia agrário-exportadora, que o modelo de Estado Nacional oligárquico mantém e ainda mais amplia. Uma provável exceção são as cidades que surgem nas áreas coloniais de imigração italiana e alemã do Sul, nas quais a cidade expressa uma estrutura agrária relacionada a comunidades de pequenas propriedades e onde o espaço no seu conjunto se organiza nos moldes da organização européia que a imigração traz consigo.
A industrialização forja, entretanto, um centro urbano de novo tipo, moldado na relação integrada da divisão territorial do trabalho, onde a ação produtiva e de mercado tornam-na co-participante da atividade econômica através do exercício de uma função especializada. É a cidadeárea de atividade secundária e terciária, que relaciona-se com o campoárea de atividade primário-agrícola, componentes de um espaço de relação cidade e campo que dividem entre si tarefas econômicas e intercambiam seus produtos e serviços especializados. Estamos já nos anos cinqüenta, era do nascimento da cidade de comando do seu entorno rural e regional,
típica do desenvolvimento das formas de acumulação do capitalismo avançado. A cidade que monopoliza a indústria e as funções terciárias e forja o nascimento de um campo reduzido ás funções primárias.
A interdependência que aí surge, estabelece a cidade de primazia sobre o campo, a cidade que subordina no interesse da acumulação industrial o campo como a região da circundância imediata, e que parte dessa célula cidade-campo para regionalmente hierarquizar a totalidade do espaço nacional, até que a indústria migra para o campo circundante empreendendo a industrialização do campo, integralizando campo e cidade na cultura desta.
3. A cidade e o campo da cultura urbana A cidade e o campo integrados da urbano-industrialização avançada guardam, entretanto, a especificidade adicional de serem mais o produto dos meios de transferência, papel da mídia à frente, que da divisão
territorial do trabalho e das trocas que noutros contextos os informam.
Nisso residindo uma outra especificidade em relação à cidade e ao campo de outros contextos.
A desigual distribuição da renda e o decorrente desigual poder de compra do campo e da população interiorana que povoam suas atividades primárias e suas pequenas cidades, é a origem desse traço que faz da mídia – mais que a circulação das comunicações, dos transportes e da energia, que não raro vêm a seu reboque –, o meio de formação por excelência da cidade e do campo integrados pela cultura urbana no Brasil.
Pode-se resumir esta especificidade na afirmação de que no Brasil é a mídia quem faz o mercado, e assim o urbano, no sentido de entender que o Brasil se estabelece como uma sociedade consumo sem ter a estrutura de renda e de mercado que em outros países foi a condição de partida, mercê do papel que a mídia, mais que o Estado, exerce na implementação do recorte fordista.
No Brasil o rádio antecipa a rodovia. E a televisão dela quase é contemporânea. O programa de rádio divulga a mercadoria e o seu modo de compra, leva o consumo urbano aos mais distantes lugares do campo e difunde nele a sociedade de massa em formação na cidade. A rodovia vem em reforço ao serviço já antigo da ferrovia, radio e mercado pressionando o poder público na implementação da infraestrutura dos transportes, até que a televisão leva a malha das rodovias a enlaçar a totalidade dos lugares.
Só então, preparada para esta entrada, a indústria migra para o campo, transforma vilas em cidades, massifica o campo e instaura a sociedade de consumo como um real consolidado. Talvez por isso Lipietz tenha considerado o Brasil um país de fordismo periférico (LIPIETZ, 1988).
A CIDADE E O CAMPO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
Não se pode analisar a cidade e o campo, e assim a relação entre ambos, nos parâmetros com que estamos teoricamente acostumados. Se cidade e campo e relação cidade-campo são o que são, é no quadro das especificidades históricas da sociedade brasileira que precisamos buscar nosso entendimento.
1. As especificidades da cidade e do campo e da relação cidade-campo no Brasil Mesmo com todas as transformações introduzidas pela marcha da evolução industrial, cidade no Brasil permanece fato da política. Define-se cidade como sede de município. Tenha o tamanho que tiver e sejam as funções de atividades que predominem na sua população, cidade no Brasil se define por esta especificidade antiga que a interliga à base políticoadministrativa do município.
A esta especificidade de formação se acrescente a especificidade recente proveniente do papel formador da mídia. Mesmo com todo simbolismo dos produtos vindos do mercado e inteiramente descolados dos modos de vida e cultura locais, a sociedade de consumo levado ao campo pela mídia não afeta o caráter rural que o processo originário empresta às cidades, estabelecendo-se entre a mídia e o poder municipal uma simbiose de reforço recíproco que pouco foi até hoje investigado.
Certamente que o mundo industrial, urbano e cada vez mais globalizado que a mídia leva ao campo, transformado num universo de indústrias e pequenas e médias cidades, altera seus modos de vida nos hábitos de uma cultura urbana. Dos novos hábitos de consumo ao plano da renovação dos quadros políticos, passa o campo por uma incrível metamorfose.
O campo se urbaniza, mas os hábitos da antiga cultura rural permanecem arraigados por trás das cidades em que ele se transforma. Poucas dessas cidades não permanecem controladas por famílias tradicionais do passado, que a ela fornecem seus quadros políticos e administrativos de referência. Há uma nítida relação simbiótica. A presença da cultura rural que permeia as populações do campo brasileiro interage com a mídia até mesmo pela necessidade de adequação de imagens e linguagem desta na divulgação de suas mensagens. Símbolos históricos e paisagísticos locais impregnam as imagens do consumo, que a mídia utiliza para passar sua ideologia. E nessa regra de merchandising, a mídia penetra ao tempo que reforça o poder político desses símbolos e os seus detentores.
Talvez por isto a rigor não haja uma rede de televisão, uma mídia nacional efetiva e de fato no Brasil, antes as redes sendo a aglutinação de repassadoras de programas das grandes emissoras em suas circunscrições regionais de domínio, repassadoras não raro de propriedade de políticos regionais que se originam, falam ou se apóiam nas antigas famílias rurais do passado.
2. O município e o custo da máquina pública (o problema da malha política) Há em decorrência um problema pouco analisado na malha política com que se divide e funcionalmente se exercita a administração pública no Brasil. Sede de município, os poderes enraizados na cidade são os primeiros a se sedimentarem quando este é instituído. Todo município surge como um reforço de domínio de quem historicamente exerce o domínio sobre a cidade-sede. Multiplicam-se os municípios e multiplicam-se as cidades com a multiplicação dessa cumplicidade, mesmo quando não é ela área de uma economia consolidada.
Ao significar um artificialismo administrativo, face a uma ligação umbelical que virou na história a referência da constituição celular do Estado, cidade e município acarretam nessa cumplicidade um custo administrativo da máquina pública brasileira que é tão maior quando mais a divisão da malha municipal se multiplica.
Condenada por este custo, sobretudo pela aceleração de sua multiplicação recente, a divisão da malha municipal não parece em si ser o problema, mas o conceito de cidade que a informa e o que ela no Brasil representa.
3. Estado e sociedade civil/ público e privado (o problema da cidadania) Não vindo de uma ruptura com o rural circundante, antes vindo para reafirmar a cultura e os valores rurais da elite sob a capa da cultura urbana, a cidade no Brasil não se posiciona como uma forma nova de representação e ideologia que configure a sociedade nrasileira como uma sociedade civil autônoma e desvinculada do Estado. Público e privado não se formam assim como realidades política e administrativamente separadas, a tutela do Estado sobre a sociedade civil confundindo e sujeitando o interesse público ao interesse privado. Não se efetiva, em outros termos, a revolução burguesa na forma como vimos acontecer nos países capitalistas que tomamos como referência de nossas concepções de sociedade e história.
A tutela do Estado sobre a sociedade civil chancelada pela cidade impede o florescimento de uma cultura de cidadania de forma burguesa, antes desenvolvendo-se no Brasil a relação típica do que Faoro designa por Estado patrimonial e cartelizado (FAORO, 1975).
Desde a representação nas câmaras municipais do período colonial o povo é o excluído do poder das decisões. Uma forma peculiar de pactuação das elites rurais regionais define o perfil e estrutura do Estado, faz da máquina do governo um executivo dos seus interesses e do Parlamento sua representação de conjunto. Um exemplo clássico é a famosa política do café com leite, assentado na política dos governadores. Desse modo, as conquistas do povo são concessões dessa elite. E o maior exemplo é o pacto populista dos anos Vargas.
Da base municipal à cúpula da União, a Federação se estrutura nesse modelo pactual, que tutela a sociedade civil, vicia as instituições políticas e neutraliza os movimentos de constituição de uma cidadania formal mínima que confira aos organismos que a represente qualquer autonomia própria de movimentos (CARVALHO, 2001).
Talvez seja este o mecanismo maior que, alicerçado numa relação cidade-campo que emana do poder das elites rurais em constante modernização econômica, reafirme o modelo de política no Brasil e o mantenha em sua essência mesmo diante das transformações mais radicais trazidas pela moderna urbano-industrialização.
4. O complexo agro-industrial e as tendências da divisão cidade e campo no Brasil
O processo da fusão entre a agricultura e a indústria que a migração desta para o campo estimula é, entretanto, o fato de mais forte repercussão sobre a cidade e o campo e suas relações em sua tendência futura.
Esta fusão se realiza através do complexo agroindustrial, que completa e radicaliza a fusão cidade-campo, no sentido da fusão dos setores econômicos num único complexo, desfazendo e reorientando a divisão territorial do trabalho costumeira da moderna economia capitalista.
A agro-indústria é uma forma antiga de organização econômica no Brasil, tendo existido sob duas formas basicamente: a do tipo canavieiroaçucareiro e a do tipo das indústrias de beneficiamento (MOREIRA, 2003).
Em ambas formas, agricultura e indústria se unem numa só unidade, mas não chegam a formar um complexo. O complexo vem com a incorporação dos setores terciário (serviços, transportes e armazenamento) e quaternário (informática e pesquisa avançada dos centros universitários) à agricultura e à indústria, já unidas numa atividade única, eliminando a separação setorial e a divisão territorial do trabalho correspondente.
Com o complexo, desfaz-se a única atividade que permanecia como característica econômica da cidade, após a migração da indústria para o campo, através da incorporação das atividades do setor terciário, que mesmo quando mantêm-se fisicamente localizadas nos centros urbanos, integram-se à vida cotidiana do complexo, e da incorporação da moderna rede da informática do setor quaternário. A pesquisa avançada da universidade, integrante do moderno setor quaternário, é um exemplo dessas atividades que se passam da cidade para o âmbito do complexo, através a criar de linhas inteiras de cursos de graduação e pós-graduação destinados inteiramente à formação de força de trabalho de alto nível de especialização demandada pelas atividades do complexo, não raro indo localizar-se na própria área ou nas regiões próximas às instalações da agro-indústria.
A organização e o desenvolvimento do complexo industrial se amplifica com o advento da engenharia genética e seu uso como força produtiva nova do modo de produção capitalista. Apoiada nessa nova base material, a economia dos complexos se generaliza para uma diversidade cada vez maior de produtos. E com isto, o espaço tende a fragmentar-se em diferentes áreas de recortes de gestão e funcionamento correspondentes aos complexos, numa forma de fragmentação em espaços autônomos e que não mais guardam relação com a separação cidadecampo de antes. Uma nova grade de fragmentação vai se multiplicando sobre o pano de fundo da antiga divisão cidade-campo (MOREIRA, 2005).
BIBLIOGRAFIA
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